Assim como o filme, esta crítica é uma continuação da primeira parte, que se encontra disponível no seguinte link.
Capítulo 6: Vilões
Com o universo do filme devidamente apresentado em sua primeira metade, o segundo ato do longa foca na criação de seus antagonistas ao seguir com a história de Joe em uma fase de sua vida em que o sexo passa a causar-lhe dor. Com esse intuito, os esforços filosóficos de “Ninfomaníaca” adotam um ângulo religioso que, desde o início, externa uma esquemática yin-yang. A visão relatada por Joe no começo do 5º capítulo – onde ela se vê como a meretriz da Babilônia – é o gancho para que Seligman, como sempre, faça a conexão com a passagem bíblica – o famoso Livro da Revelação – onde a prostituta é associada com o Anticristo. A visão é ainda mais surpreendente visto que a própria Joe desconhecia tal passagem, chegando a pensar que a figura fosse a Virgem Maria. Mas é a partir deste gancho que Seligman disserta sobre as diferenças entre as religiões ocidentais e a orientais, onde ele pontua que o grande contraste entre elas – especialmente dentro das religiões abraâmicas – se encontra no fato de que, enquanto aqui temos as doutrinas enfocadas no sofrimento, lá elas se concentram na felicidade.
A análise, mais uma vez, é apoiada por mais um objeto visto na parede do quarto, um quadro de Maria com o menino Jesus. Imagem que, embora tenha se espalhado por algumas partes do mundo, não é central à religião ocidental, já que em muitas vertentes do Cristianismo, a veneração de imagens é proibida. Mas, ainda que as imagens tenham se tornado mais comuns com o tempo em nosso lado do planeta, o grande diferencial se encontram no estilo delas. Enquanto no Oriente sempre foi comum que pinturas retratassem a Virgem Maria com o Menino Jesus (felicidade), aqui sempre houve um destaque claro para o uso do crucifixo (sofrimento) como símbolo máximo do Cristianismo.
Esse antagonismo – iniciado com o estudo da mulher-versus-homem visto na primeira metade do longa – passa a desenhar novos contornos aqui ao colocar pouco a pouco Seligman em uma posição de opositor à Joe, uma extrapolação – talvez desenvolvimento – da figura que viveu no primeiro ato, em que fazia o papel simbólico do ego da protagonista.
Capítulo 7: Quem somos nós
Dentro desse contexto não é surpresa alguma que Joe passe a relatar seu envolvimento com fetichismo, mais especificamente, neste caso, com sadomasoquismo, em paralelo claro com a Paixão de Cristo, uma passagem bíblica de violência sistemática em que a religião cristã abraça um evidente lado de sadismo. Nisso, vemos Joe se envolver com um homem apelidado de K (vivido com extrema intensidade por Jamie Bell), que tem como “hobby” causar sofrimento físico a mulheres, com o consentimento das mesmas, é claro. Para criar o impacto necessário, a primeira sequência de tortura – não há palavra melhor para descrever o que ocorre lá – é apavorante. As visitas de Joe ao misterioso homem, no entanto, mostram um contraste de sensações ao vermos a dor misturada com o enorme prazer vivido pela protagonista, espelhando aqui a visão do diretor acerca da crucificação de Jesus.
O longa ainda navega em águas ainda mais turvas ao explorar a ideia de que nós, quando crianças, éramos seres com múltiplas perversões que, com o tempo e a influência sufocante da sociedade, passamos a controlar e, por vezes, a reprimir nossos próprios instintos. Nesta passagem se destaca a seguinte reflexão: não é nobre o sofrimento de uma pessoa que nasceu com uma tara proibida, mas que, para o bem da sociedade, a controla por toda a vida?
O filme meio que dá uma resposta à própria pergunta ao explorar no Capítulo “O Espelho” sobre quem realmente somos, retratando a época da vida de Joe em que ela, devido à sua obsessão pelo sexo e a busca sem limites pelo prazer, termina por sofrer perdas físicas – dores e sangramentos vaginas –, emocionais – ao perder o marido e a guarda do filho – e financeiras – ao ter seu emprego ameaçado por seu comportamento. Sua busca – forçada – por ajuda e por abandonar o seu vício só tem como resultado a conclusão de que ela não pode fugir de quem realmente é.
Capítulo 8: Conclusões finais
Construindo um terceiro ato, então, em que Joe finalmente faz algo de que se arrepende – e que, claramente, a faz se sentir mal – vemos Joe mudando de emprego para algo que realmente faça uso de suas habilidades ao assumir um cargo de líder de um time de extorsionistas. Tendo como mentor em sua nova “carreira” o inescrupuloso L (vivido pelo sempre excepcional Willem Dafoe), Joe recebe o conselho de procurar uma protegida para substituí-la quando ela quiser se aposentar. O plano para isso, no entanto, deixa até mesmo a insensível protagonista de estômago virado: procurar e fazer amizade com alguma adolescente sem pais que precise de ajuda, financeira e emocional, de forma que a garota fique tão agradecida que, com o tempo, possa assumir o trabalho ilegal feito por Joe.
Inicialmente bem-sucedido, o plano tem um resultado inesperado quando Joe começa a se envolver emocionalmente com sua protegida, P, e a garota assume, não coincidentemente, ao mesmo tempo o papel de filha e amante. A figura de P simboliza e sumariza não apenas os erros de Joe, mas também serve como preparação para o início do epílogo do longa, que é a tomada inicial do Volume I com Joe desmaiada e ensanguentada naquela viela fria e escura.
Como mencionado na primeira parte da crítica, a punição de Joe não poderia acontecer devidos a seus anseios sexuais e, como esperado, aqui temos uma resolução que pune os atos da protagonista verdadeiramente merecedores de repreensão. A trilha sonora do filme também não desaponta. Enquanto a letra da faixa tema da Parte 1 funcionava como uma profecia do que aconteceria aqui, a canção tema do Volume II, “Hey Joe”, não é adequada apenas pelo título, mas, novamente, tem uma letra que faz referência direta a eventos transcorridos na tela.
Já o vilão Seligman abraça de vez, no terceiro ato, o papel de antagonista de Joe e de yang – lado claro – de seu yin – lado escuro –, enquanto Lars von Trier cria uma série de brincadeiras visuais e interpretativas com os dois personagens e a oposição de seus lados (as duas metades de um inteiro). Produzindo uma série rápida de inversões de papéis no desfecho da projeção, Von Trier fecha com chave de ouro uma obra-prima estupendamente cerebral por natureza, com conteúdo suficiente para nos fazer refletir por horas sobre questões que – muitos de nós – nunca havíamos sequer considerado como abertas para discussão.
O CinemAqui ainda publicou uma crítica tanto sobre a primeira quanto sobre a segunda parte de Ninfomaniaca.