[dropcap]F[/dropcap]inalmente Livres é uma comédia francesa que escala de maneira tão dinâmica suas ideias no decorrer da suas quase duas horas, que é possível ignorar a falta de criatividade e de coerência em uma história tresloucada e cheia de energia.
O filme lida com a reviravolta inicial tanto na ação desenfreada quanto na reação psicológica da protagonista, a Tenente Yvonne Santi, interpretada pela sempre eficiente Adèle Haenel, que descobre que seu falecido marido não era o herói que todos achavam que fosse, mas sim um policial corrupto que colocou um inocente na cadeia pelo roubo de uma joalheria, o traumatizado Antoine. O roteiro escrito por Benjamin Charbit, Benoît Graffin e Pierre Salvadori, que dirige o longa, busca explorar a todo momento a troca de papéis entre o lado da justiça e dos criminosos, e com isso nos fazer dar uma risada socialmente consciente das situações bizarras que monta.
Salvadori aproveita toda a dinâmica entre Yvonne e Antoine e a explora de maneira ativa na direção, buscando sempre o melhor enquadramento e movimento de câmeras para ressaltar o absurdo com toda a ênfase que as trocas de papel merecem. Sua energia em conduzir as cenas é o que as torna tão hilárias, e com a ajuda de três editores cria uma imersão difícil de resistir em um mundo visto através de uma sarcástica lupa que, ao mesmo tempo que se diverte, realiza uma crítica social sem maiores pretensões.
O filme mostra ter coração com facilidade, mas para isso a ponta interpretada por Audrey Tautou é primordial. Ela faz a companheira de Antoine, que repassa em sua cabeça todos os momentos perfeitos que terá depois de ele sair da cadeia. Tautou, vale dizer, realiza um trabalho dúbio em sua carreira, que oscila entre a obscuridade de um ser ou para próximo do papel que a deixou internacionalmente conhecida, a doce, meiga e tímida Amélie Poulain. Mas Salvadori a traz aqui pela segunda vez em um papel mais dramático. Em Amar Não Tem Preço ela fazia uma golpista cínica, enquanto aqui ela esbanja desilusão através de seus traços de velhice e cansaço que valorizam seu pequeno papel.
Já a mais jovem e ágil Adèle Haenel, embora permaneça como a escolha acertada para personagens flexíveis ao mesmo tempo que auto-centrados, como em A Garota Desconhecida ou o mais recente Retrato de Uma Jovem em Chamas, aqui ela é desperdiçada em um filme de ação que oblitera sua capacidade de, na mesma história, fazer rir e chorar. Sua burocrática e moralmente flexível tenente serve apenas como suporte para manter a loucura do Antoine de Pio Marmaï em ação. É difícil capturar a essência de sua Yvonne pelos olhos de Haenel, que está em um ritmo e intensidade diferentes do elenco. E tudo isso porque Haenel sabe que terá que encontrar seu equilíbrio nas cenas finais em uma conclusão conformista e insatisfatória. O roteiro a torna refém de seu desfecho evitando que ela brilhe em sua transição.
Ela e Marmaï já haviam trabalhado em filmes anteriores, como Aliyah, e aqui exibem uma química invejável, como se pode notar na facilidade com que estabelecem uma conexão após terem se jogado no rio. Marmaï está fora de controle fazendo seu homem comum injustiçado e que agora vítima de seu período na prisão perdeu sua bússola moral e tenta compensar se tornando de fato uma pessoa agressiva e criminosa. Não é um personagem que convence, mas ele é a força que move a história, e aos pouco nos acostumamos com sua caricatura sobre as injustiças do mundo porque é divertido ver a reação da sociedade.
Finalmente Livres é uma comédia com vários momentos que são engraçados por si só, mas ao mesmo tempo deseja através das inúmeras versões do pai contados pela Tenente Yvonne ao seu filho-dispositivo-de-roteiro realizar o comentário social sobre como a narrativa muda por completo quem é o herói e quem é o vilão da história. Essas histórias para criança dormir são as histórias para boi dormir da sociedade como um todo, que precisa acreditar em alguma dessas versões para seguir adiante.
“En liberté!” (Fra, 2018), escrito por Benjamin Charbit, Benoît Graffin e Pierre Salvadori, dirigido por Pierre Salvadori, com Adèle Haenel, Pio Marmaï e Audrey Tautou.