First Cow – A Primeira Vaca da América | Uma delicada fábula sobre o capitalismo


É impossível olhar para First Cow – A Primeira Vaca da América (não é a primeira, o filme comenta isso… mas enfim…) e não se permitir olhar o filme a partir de uma espécie de fábula que tenta entender o mundo moderno através de um pequeno conto durante aquele “velho oeste” mais velho, lá pelo começo do século 19.

O filme é dirigido e escrito por Kelly Reichardt, a partir do livro de Jonathan Raymond, e não corre para demonstrar aquilo que quer, mas o faz assim que vai chegando no final e você vai juntando as peças.

Na verdade, o filme começa, literalmente, juntando peças. Já que abre com uma paisagem que poderia estar em qualquer lugar do tempo, mas logo o espectador descobre estar nos dias de hoje, com uma menina e um cachorro descobrindo duas ossadas enterradas lado a lado, o que leva a história para Cookie (John Magaro), o cozinheiro de um grupo de exploradores e caçadores de pele embrenhados no oeste selvagem dos Estados Unidos.

Cookie acaba salvando King-Lu (Orion Lee), um chinês perdido no meio da floresta e perseguido por uns russos que querem mata-lo. Parece piada esse monte de nacionalidades juntas no meio do velho oeste, mas a cobiça pela descoberta das riquezas desse novo mundo carregava pessoas do mundo inteiro para esse lugar que beirava o inóspito.

Cookie e King acabam se cruzando mais uma vez anos depois, no meio de um acampamento, vila ou cidade, você pode chamar do que quiser.  A questão maior é que era um resto de civilização sustentado por esses exploradores meio sem destino e com um monte de moedas correntes, lama e, para Cooke e King, uma oportunidade, já que começam a vender uns deliciosos bolinhos feitos com a o leite da vaca dessa espécie de “responsável” pelo local (Toby Jones). E nesse momento começa a fábula.

Tudo bem, talvez não seja uma fábula, mas sim um jeito de entender como funciona um sistema onde o capital e os meios de produção não fazem sentido e só estão por lá para esmagar o ser humano. Kelly Reichardt não cria essa sensação esfregando nada na cara de ninguém, bem pelo contrário, já que, lenta e cirurgicamente, vai construindo essa amizade dos dois personagens e tentando entender esse cenário que parece não fazer sentido visto daqui do século 21.

O filme da diretora espera essas composições poderosas se construírem sob sua visão. Sua câmera ainda força alguns movimentos que mais parecem pêndulos vagando pelos cenários cortando as cenas enquanto os personagens vagam por esse mundo onde os títulos e etnias fazem tanto sentido quanto tentarem prever as demandas do mercado de pele através da moda em Paris.

A ideia do lucro fácil é o que move aqueles personagens. Desde o chefe, até o líder nativo, todos só se importam com a possibilidade de transformar aquilo que está em suas mãos em poder. E se o dinheiro é esse meio, portanto que seja o caminho. A dupla de protagonistas ultrapassa a questão de propriedade privada para vender seus bolinhos, os mesmos bolinhos que o personagem de Toby Jones experimenta e fazem com que ele se sinta em algum lugar de sua Londres. O sabor lhe ajuda a fazer aquela existência sem sentido no meio do nada ganhar uma pitada de prazer.

Cookie e King enxergam nos bolinhos a possibilidade de ser mais do que são, de terem como ditar seus destinos e enxergarem seus sonhos fazerem sentido, mesmo sob um barraco todo quebrado. É o dinheiro nesse saco, escondido em uma árvore, que os permitirá seguir em frente, mesmo que o perigo aumente. A dúvida maior é entender se aquilo vale a pena. Para ambos os lados. E isso não deveria ser uma questão tão sócio-política assim.

Cookie cozinha um clafoutis para o personagem de Toby Jones, assim ele poderia humilhar o capitão vivido por Scott Shepherd. O sabor do mirtilo não está na fruta, mas sim no poder. Acabar com os “ladrões de leite” irá acabar com os bolinhos, assim como acabar com o sabor dos dias mais felizes, mas a sensação do poder precisa ser maior. A vaca então é colocada em uma cerca onde ela não vai mais poder pastar, mas quem realmente está preso?

Essa discussão precisa acontecer em First Cow, é ela que está por trás de todo capricho visual. A recriação de época é simples, porém poderosa, assim como a mensagem que tudo isso carrega consigo. Séculos depois, o saco cheio de dinheiro não serve para mais nada, mas talvez o encontro dessas duas pessoas excluídas pelo mundo onde nasceram e cresceram tenha valido a pena. A amizade deles fez com que o pouco de vida que tiveram valesse a pena. Os bolinhos deram um alento para essas almas destruídas e perdidas, mas é a ganância e a sensação de poder que irão sempre estragar tudo.  

First Cow é uma fábula sobre o mundo, o que valia em 1820 ainda vale hoje, acreditem. As vacas mudaram e os bolinhos são outros, mas eles continuam por aí.


“First Cow” (EUA, 2020); escrito e dirigido por Kelly Reichardt, a partir do livro de Jonathan Raymond; com John Magaro, Ewen Bremmer, Orion Lee, Toby Jones e Scott Shepherd


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