[dropcap]S[/dropcap]e você se lembra das pornochanchadas – produções de baixo orçamento, cunho erótico e qualidade duvidosa lançadas na época da ditadura militar – é bem capaz de gostar muito de Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava. Ele dá uma nova cor ao tema. Não se trata de uma mistura inconsequente como aquelas homenagens vazias. A montagem das cenas, ou seja, a sequência que elas seguem, é o núcleo da narrativa que ele tenta criar a partir do nada. Sua ambição: fazer um memorial político/sócio/econômico da época. Dentro das pretensões das pornochanchadas, até que não está muito longe.
Fui a uma pré-estreia empolgada, cheia de amigos e conhecidos da equipe técnica. Não há atores no projeto. Todo o filme é um recorte de outros filmes, cujo maior desafio foi encontrar não apenas os rolos, mas todos os detentores dos direitos. E das músicas. Foi um trabalho de escavação cujo resultado estava sendo comemorado naquela noite como uma vitória contra o status quo da época.
Aliado a isso, todo o clima amistoso e brasileiríssimo do conteúdo que vimos é empolgante por si só. Talvez não haja nada mais genuinamente brasileiro, que una todos os povos e culturas, que uma pornochanchada setentista e sua mistura única no mundo, com direito a mulatas, branquinhas, homens fanfarrões, gringos com sotaque falso e diálogos memoravelmente horríveis.
A “história”, como o título, uma brincadeira com Histórias que Nossas Babás Não Contavam, uma paródia de Branca de Neve e os Sete Anões (que também possui cenas no filme), é contar através de recortes as discussões que não existiam nesses filmes, mas que eram citadas de passagem, como política, economia, e questões “polêmicas”, como direito das mulheres, ataques à “moral e bons costumes”, como aborto, divórcio etc.. Todos os temas são citados em ordem, e os comentários vem de vários filmes em uma corrente de pensamentos e momentos icônicos da cinematografia brasileira.
Observe como, a todo momento, a montagem (e edição) consegue dar fluidez a cenas que praticamente não existem. É como se esses filmes ganhassem uma nova roupagem, mais dinâmica, mais século 21, e viesse nos visitar como um fantasma do passado do Conto de Natal; uma visita bem-humorada e divertidíssima.
O filme peca por não ter de fato uma discussão séria. Os letreiros iniciais e finais parecem sugerir que ele tem, que aquilo foi produzido como memória para “não repetirmos os erros do passado”. Mas não há erros identificáveis no filme; ou pelo menos não erros universais. Depende de quem está lendo e de suas opiniões sobre os temas pincelados. Eu, por exemplo, achei divertidíssimo o humor ocasional cercado de ironias e má atuações, e todas as piadas cercando o mercado de ações são para quem já trabalho na área ou já acompanhou notícias por mais de uma década, uma pérola à parte. Os famosos nus das mulheres (e dos homens) são mostrados, mas não erotizados; chegam a ser tristes em alguns momentos, libertadores em outros.
A própria bagunça que o filme faz com diferentes histórias e personagens acaba se tornando mais um exemplo digno do que é Brasil, esse caos que sob os olhos de qualquer outro povo soa como um caos imoral e completamente delicioso. Não há outra forma de ver nosso povo e nossa história. E se você adora pornochanchadas, mesmo que em outras áreas da vida seja um coxinha, é bem capaz que você tenha o vírus brasileiro no sangue; apenas não te deram o diagnóstico.
“Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava” (Bra, 2017), dirigido por Fernanda Pessoa, montado por Luiz Cruz, com atores diversos de pornochanchadas diversas.