Indústria Americana | Uma invasão chinesa


[dropcap]O[/dropcap]s bons momentos em Indústria Americana, novo documentário da Netflix, são quando os diretores Steven Bognar e Julia Reichert se aprofundam em demonstrar as diferenças brutais entre as culturas chinesa e americana, momento em que finalmente começamos a entender (ou pensamos estar entendendo) o que está acontecendo com o mundo atual e de como ele veio a se tornar como está. E os maus momentos do filme, pra variar, provém da ignorância quase completa da complexa economia contemporânea que rege o mundo, um erro fatal quando se tenta analisar o “modus operandi” do capitalismo.

Este é um filme que possui a imensa vantagem de ter acesso a momentos importantes de uma história interessantíssima envolvendo a abertura de uma fábrica de vidros para automóveis em Dayton, Ohio. Sim, esta é a mesma Dayton, Ohio, que figurou nas manchetes de todo o mundo este mês por conta de um tiroteio em massa, além de ser uma das cidades-líderes em criminalidade nos EUA. Qualquer coincidência é mera coincidência.

Mas a história deste filme começa em 2008, logo após o início da crise econômica que gerou a falência de várias empresas americanas, entre elas, mais uma vez (é a terceira vez na história? quarta?) da General Motors, uma fábrica de automóveis subsidiada pelo governo americano e que teve o fim merecido, gerando como consequência a demissão de milhares de habitantes locais. Os documentaristas favorecem nossa conexão com esse mundo trazendo um pouco da história de vida de alguns deles, desde a falência da GM até o que acontecerá depois, assim que eles forrem reempregados pela empresa chinesa, e no decorrer dos dez anos seguintes.

Foi uma surpresa para mim, e acredito que será para muita gente, descobrir que uma corporação chinesa decide abrir uma filial no pátio onde estava instalada a GM em pleno pós-crise de 2008, contratando muitas das pessoas que se tornaram desempregadas. De acordo com o documentário, esta é uma das inúmeras tentativas da China em adquirir e abrir empresas em solo americano nessa época, e nós veremos em primeira mão porque esta foi uma péssima ideia do ponto de vista humano.

Os chineses (e asiáticos de modo geral) são um povo que precisa ser estudado pela nossa mente ocidental. Tendo o coletivismo incorporado em suas mentes por gerações, uma série de cinco líderes populistas, a cultura chinesa entende que a jornada diária de um funcionário por doze horas em uma fábrica seja um dever e uma honra, e o filme mostra isso quando alguns americanos visitam a matriz na China e veem abismados a reunião matinal de uma equipe da fábrica que se assemelha a de um pelotão do exército: eles se alinham em filas, respondem a palavras de ordem em um discurso preparado como injeção de otimismo e incentivo para o início do dia. Voltando à América, um dos gerentes tenta imitar o processo, e o resultado vai de risível a patético.

Já o individualismo ocidental é conhecido por todos daqui. Foi o que construiu a América e é o que a tem destruído, em um longo e tortuoso processo de aplicar o socialismo nessa sociedade, visto por muitos como uma vitória, sem perceberem o tiro na culatra que é o protecionismo trabalhista. A história desta luta entre empresas e empregados é descrita em um inflamado e valioso discurso de um dos representantes de um sindicato americano, que está disposto a ser eleito como representante dos funcionários da filial da Fuyao, a empresa chinesa do filme, pois as condições de segurança por lá são insalubres demais. Para os padrões americanos, é claro.

Para os padrões chineses, mais uma vez, os funcionários americanos testemunham em incredulidade pessoas recolhendo vidros quebrados e os separando por cores sem usar óculos protetores e luvas anti-rasgo, uma calamidade pública que fere gravemente os direitos humanos mais básicos.

O filme vai tratando de várias diferenças entre os dois povos de uma maneira fluida, com um ritmo de tempo que captura anos de história sem nos cansar. A Fuyao se tornou um laboratório de observação de como é impossível a adequação do modo de vida do chinês pelos lentos e improdutivos americanos. Eles trabalham apenas 8 horas por dia e folgam dois dias por semana, e sequer podem ser obrigados a fazer horas extras (em uma clara afronta à nação, claro).

Steven Bognar e Julia Reichert filmam tudo isso como ocidentais: mostrando a ação acontecendo. Este não é daqueles documentários chatos que as pessoas se sentam e ficam falando. Nós vemos as pessoas no local de trabalho trabalhando, e ouvimos o que elas têm a falar como uma narração em off, o que funciona para nos inserir na rotina dessas pessoas.

Quando a Fuyao faz alguma declaração, não são papéis que nos são apresentados, mas o próprio presidente da companhia, que viaja para os EUA e faz uma apresentação para os gerentes. Este é um documentário vibrante que não usa qualquer gráfico ou entrevista formal, preferindo essa abordagem mais natural e orgânica. O próprio tempo, de uma década, vai passando e aos poucos vamos inferindo o ritmo com que os eventos acontecem.

Ao mesmo tempo que esta é uma história um tanto depressiva da economia americana e do estado lamentável que o ocidental vive, com suas contradições e pseudo-direitos que o tornam bebês chorões. Indústria Americana quer usar seu material mais como um alerta e uma pequena propaganda política para as próximas eleições. Tanto que o filme foi apresentado por um pequeno vídeo, não presente no filme, mas na Netflix, da família Obama. Barack é o Peter Russo (House of Cards) dessa história, defensor dos fracos e oprimidos, e nada mais justo ele demonstrar seu descontentamento com a situação que ironicamente ele próprio fez parte, almejando certamente alguma chance nas próximas disputas presidenciais.

Porém, demagogias à parte, Indústria Americana é acima de tudo uma ótima oportunidade para entendermos melhor como a China está se transformando em uma usina de produtividade, ameaçando claramente a hegemonia americana. Poucas informações da intimidade das empresas ou das pessoas envolvidas chegam a nós, e essa é uma oportunidade de ouro. E, eu prometo, não é um documentário chato, por mais que o assunto possa parecer..


“American Factory” (EUA, 2019), dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert, com Cho Tak Wong, Robert Allen e Junming ‘Jimmy’ Wang.


Trailer – Indústria Americana

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2 Comentários. Deixe novo

  • Vimos aqui a crítica de um liberal que acha inadequado trabalhadores lutarem em conjunto por melhores condições de trabalho porque claro, até a agora na vida de bloqueirinho não fez falta nenhuma falta.

  • Resumindo a visão do crítico direitinha babaca: americanos são bebês chorões por não aceitarem a escravidão que os chineses aceitam.

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