Em uma cinebiografia tradicional, Joaquim seria apenas o prólogo da história de José Joaquim da Silva Xavier, mais conhecido pela alcunha de Tiradentes, o dentista que tornou-se herói da Inconfidência Mineira. Mas o interesse do diretor e roteirista Marcelo Gomes está em nos apresentar ao homem por trás do mito. Aqui, conhecemos melhor as situações e o contexto que levaram um alferes simples a tornar-se cada vez mais envolvido na situação social e política de seu país.
Para tanto, Gomes inicia Joaquim já demonstrando de forma pesada e esteticamente belíssima o resultado de todo esse conflito. Assim, com uma câmera mais estática do que a que nos guiará pelo restante do filme, em frente a uma capela, vemos a cabeça decapitada de José fora de foco, perdendo-se cada vez mais em meio à paisagem diante da forte chuva. Em off, José declara que acredita ter perdido a vida de tal forma por ser “o mais pobre, o mais exaltado” da Inconfidência. Isso o levou a tornar-se a figura emblemática do movimento mas, também, a ser mutilado e a ter os pedaços de seu corpo espalhados por Minas Gerais.
Como chegamos até ali? A partir de um alferes obediente e pouco contestador, mesmo percebendo vez ou outra as injustiças afligidas pelos patrões sob ele e seus colegas e, claro, também sob os escravos. Entretanto, Joaquim trabalha em um posto de cobrança de pedágio, onde é responsável por perseguir suspeitos de roubar ouro, e encontra-se cada vez mais incomodado pelo fato de que seus superiores insistem em ignorar seus pedidos por uma promoção a segundo-tenente.
Ele acredita ter finalmente encontrado a chance de provar-se ao ser convocado a liderar uma missão para procurar novos veios de ouro na região. Joaquim, então, parte ao lado de seu subordinado Januário (Rômulo Braga), do escravo João (Welket Bungué), do índio Inhambupé (Karay Rya Pua) e do português Matias (Nuno Lopes). Mas Joaquim não quer a promoção apenas pelo aumento de status: ele pretende utilizar parte de seu pagamento em ouro para comprar a escrava Preta (Isabél Zuaa), por quem é apaixonado e com quem mantém um relacionamento.
No caminho, é claro, Joaquim depara-se com todas as hipocrisias do governo, com a desigualdade sofrida pelos indígenas e negros e com a decadência cada vez mais pronunciada do sistema político da época. Entretanto, Gomes acerta na maneira sutil e complexa com que torna o protagonista cada vez mais envolvido na luta contra a Coroa portuguesa. Esta se dá muito mais por suas próprias motivações pessoais do que necessariamente por um espírito revolucionário, fazendo com que Joaquim não sofra uma transformação radical (e que soaria forçada) ao longo dos cerca de 100 minutos de duração do longa.
Afinal, o cineasta demonstra um esforço admirável em não romantizar de forma alguma a produção. O final do século 18 é retratado em toda a sua decadência e precariedade, mérito de Gomes, do diretor de arte Marcos Pedroso e da figurinista Rô Nascimento. Opressivo e imundo, o período é retratado com seus piolhos, carrapatos, roupas rasgadas, sujeira, cicatrizes, feridas e falta de higiene ¿ algo muito presente também, é claro, nas próprias atividades odontológicas de Joaquim. Enquanto isso, os gemidos do chefe de Joaquim ao estuprar Preta aos poucos tornam-se animalescos, ilustrando mais uma vez a sutileza que o filme é capaz de exibir. Acompanhando esse caos, Gomes e o diretor de fotografia Pierre de Kerchove investem em uma instável câmera na mão que também traz uma linguagem moderna à obra, ao contrário do caminho plasticamente clássico escolhido pela maioria dos filmes de época.
Entretanto, Gomes exagera um pouco ao apresentar comentários que tornam-se irônicos a partir do conhecimento que a plateia têm do mundo atual. Assim, um discurso do protagonista sobre a glória e o poder dos Estados Unidos começa promissor, mas torna-se exagerado quando, em vez de encerrar logo, começa a cair na idolatria cega até então não apresentada como parte da personalidade de Joaquim.
Aliás, a caracterização complexa do personagem depende muito, é claro, do trabalho fabuloso de Júlio Machado. Em seu primeiro papel de destaque no cinema, o ator compõe Joaquim como um homem fortemente atraído pela chance de encontrar, na luta inconfidente, o reconhecimento que lhe é negado por seus patrões ¿ algo que conquista sua dedicação tanto, ou mais, do que a questão política envolvida na revolução. Demonstrando a forma com que o protagonista entrega-se cada vez mais ao desespero e à solidão conforme vai se envolvendo com a causa, Machado também acerta ao retratar a condição de Joaquim como uma figura imperfeita, apaixonado de forma sincera por Preta e menos racista do que os demais, sim, mas também ambicioso e capaz de atos de crueldade em nome de seus objetivos.
Joaquim é um retrato nada idealizado de um acontecimento histórico e, portanto, não é à toa que, em certo momento, Gomes traz a imagem de um dos líderes da Inconfidência sendo balançado em sua rede por uma escrava. Afinal, aqui, os portugueses encontram-se no topo, com os brasileiros em seguida e, bem abaixo, os índios e os negros. Para retratar essa exclusão sem repeti-la em sua obra, Gomes traz uma bela cena em que o escravo João e o índio Inhambupé cantam em harmonia, cada um em sua língua-materna, enquanto os brancos se isolam ao lado uns dos outros na bebida. Longe de existir apenas como interesse amoroso do protagonista, Preta também recebe motivações individuais.
Assim, Joaquim se estabelece como o estudo de um personagem-chave da história brasileira e que, aqui, recebe a humanidade e a complexidade frequentemente esquecidas quando falamos de figuras icônicas como Tiradentes. Mais do que isso, a obra é o retrato de um país injusto, desigual e inconsistente. Séculos depois, não é nada difícil nos identificarmos com esse cenário.
“Joaquim” (Bra/Por, 2017), escrito e dirigido por Marcelo Gomes, com Júlio Machado, Nuno Lopes, Isabél Zuaa, Eduardo Moreira, Diogo Dória, Karay Rya Pua, Welket Bungué, Miguel Pinheiro e Rômulo Braga.