[dropcap]N[/dropcap]ão é difícil entender de onde saiu tanta mudança entre o primeiro Jornada nas Estrelas (O Filme) e esse Segundo, A Ira de Khan, e a principal dessas, muito provavelmente, diz respeito a esses quatro anos de diferença. Um passo em uma década que popularizou um tipo de cinema que corria em busca de cifrões das bilheterias ao invés de, simplesmente, uma boa história para contar.
Longe de A Ira de Khan não ter uma história boa a ser contada, na verdade ele a tem, mas uma que não esconde nem uma estrutura muito mais a vontade com os novos tempos, nem que deixa de mostrar para ninguém que, dessa vez, aquele fã de longa data iria ficar tão empolgado com tudo, que nem iria perceber a obvia queda de qualidade narrativa e técnica.
Ainda mais quando eles teriam os tampões de seus cérebros arrancados de suas cabeças com um final que prometia chacoalhar toda mítica da série. Pelo menos até o terceiro filme.
Kobaiashi Maru
O ano era 1967 e Space Seed era o 22° episódio da primeira temporada da série clássica. O mesmo em que o capitão Kirk e a Enterprise dão de cara com uma nave chamada Botanic Bay, um cargueiro cheio de passageiros em hibernação que se perdeu e ficou à deriva no espaço desde 1990 (aproximadamente 300 anos antes). O problema é que dentro dessa nave também estava um certo Khan, um ditador da Terra que acaba colocando em perigo toda tripulação da Enterprise quando acorda e é levado para dentro dela.
Pronto, está ai o ponto de partida de A Ira de Khan, um verdadeiro presente para os fãs que acabam ganhando uma sequencia direta do episódio. Partindo exatamente da premissa lançada por Spock ao final do episódio, após Kirk decidir deixar tanto Khan, quanto os passageiros (e seu asseclas) da Botanic Bay, em um planeta desabitado: “Seria interessante ver o que Khan consegue fazer em 100 anos com um Planeta só dele”.
Junte isso à possibilidade de resgatar o ator original, o mexicano Ricardo Montalban, há quatro anos no ar como protagonista de Ilha da Fantasia, e o segundo filme da franquia se descobre com a faca e o queijo na mão. Mas ainda assim as possibilidades poderiam ir contra, e só os fãs da série se divertiriam com todas essas referências. Então, assim como o próprio Capitão Kirk trapaceia para vencer a o teste do Kobaiashi Maru, por que não sacanear todo mundo e fazer desse, o filme em que o Spock morre?
É verdade também que, reza a lenda, o próprio Leonard Nimoy só teria aceitado voltar à franquia se seu Vulcano se despedisse da série logo no início, e que, muito provavelmente, ele tenha sido convencido a, pelo menos, fazer com que essa “partida” se tornasse o ponto final do filme. E como o assunto é anos 80, suas altas bilheterias e continuações, no final das contas (talvez trapaceando até o próprio ator) por que ainda não colocar logo uma chance de que ele pudesse voltar em um terceiro filme?
Não que isso tudo possa servir de julgamento para a qualidade do filme, mas toda ideia e concepção é tão formulada para o sucesso, tanto entre os antigos, quanto entre os novos fãs, que seria impossível deixar de entender por que, até hoje, A Ira de Kahn continua sendo um dos filmes preferidos dentre todos envolvendo a tripulação clássica.
“Melhor das épocas, pior das épocas”
À começar pela direção, todo resto desse segundo filme parece fadado a mergulhar de cabeça no clima descartável que o primeiro se esforçou para não fazê-lo. Nicholas Meyer estava bem longe da experiência de Wise, o roteiro ganhou um monte de mãos e nomes não creditados e, por fim, o grande “pai” da série, Gene Roddenberry acaba relegado a um papel de consultor, enquanto Harve Bennet assume a cadeira de Produtor Executivo.
E o que isso quer dizer? Bom, pode não ser nada, mas também pode soar como a junção de um monte de gente muito menos preocupada com um clima e movidas pelo peso que, naquele momento, a marca já tinha. Um passo em falso nas bilheterias seria um desastre de proporções impensadas, então a solução é aproveitar o que aquela época tinha de melhor.
A Ira de Khan tem mais Frota Estelar, mais naves, mais fasers, uma direção de arte muito mais empolgada e, finalmente, um monte daquilo que foi relegado em seu primeiro momento: guerras espaciais.
É verdade também que esse segundo filme acaba deixando muito mais para as gerações que vem a seguir do que, talvez, qualquer um dos outros, mas tudo de um jeito genérico e fútil. Os uniformes ainda não são aqueles coloridos da série, mas acabam sendo os mesmo que serviram de fonte de inspiração para todas as séries que vieram da sequencia. Assim como o ritmo da batalha espacial que se dá, tirada cirurgicamente de uma série de filmes bucaneiros que fizeram sucesso em Hollywood algumas décadas antes.
Não existe tempo para perder contemplando a Enterprise (nem gasto na produção), portanto o mais rápido é reciclar uma quantidade enorme de takes do filme anterior. E por mais que isso possa parecer um problema gritante, é apenas um reflexo da pressa com que tudo acontece no filme, afinal o que eles querem mesmo é poder colocar Khan e Kirk frente a frente nessa vingança do primeiro.
E nem isso chega a fugir da formatação muito mais rasa de sua estrutura, pois ainda saca da manga um Projeto Genesis que pode salvar raças inteiras, mas nas mãos erradas pode acabar com mundos. Premissa mais que batida, mas que aqui serve para florear um pouco mais a relação entre os dois inimigos, já que ambos ainda precisam correr em busca dessa “arma”.
A Ira de Kahn então é feito para um público geral, que gostou do que viu no primeiro filme, mas sentiu falta da ação pura e simples, de um vilão de roupa rasgada, sem frescura, sem busca interior, apenas uma boa e velha vingança. E por que então não fazer tudo isso com um final daqueles de cair o queixo e deixar todos extasiados à espera do terceiro filme?
A voz do povo
Mas esse segundo Jornada nas Estrelas também é conhecido por suas lendas e histórias de bastidor, e eis aqui uma. Uma que diz respeito a uma exibição-teste que acaba com o ataúde de Spock se perdendo na “fronteira final”. O problema é que o público teria saído reclamando de uma falta de esperança dessa conclusão, afinal o vulcano não poderia simplesmente morrer sem deixar nos espectadores a impressão de que aquilo pudesse ser mudado em um terceiro filme, o que levou os produtores do filme a imporem aquele plano final no Planeta Genesis com o “caixão cósmico” do personagem à espera da sequência.
E como qualquer lenda, é difícil pontuar o que é ou não verdade, assim como o que é ou não exagero. Mas uma coisa fica clara: A Ira de Khan quer mesmo é ser o primeiro filme dessa nova franquia, ignorando grande parte (ou tudo) do que foi o primeiro e garantindo, no mínimo, uma década de sucessos. Entretanto, nem matar o Spock, nem forçar uma continuação, parecem ser os problemas reais, mas sim a vontade de ser só mais um entre tantos é que prejudica o filme e lhe impede de ser muito mais do que acabou sendo.
De modo desastroso acaba repetindo a premissa da aposentadoria de Kirk, assim como em certo momento resvala em uma discussão divina diante do poder do tal Projeto Gênesis, mas essa pertinência (que é movida por um pensamento do sempre interessante Doutor McCoy), logo é deixada de lado, assim como a melancolia dos anos que se passaram e colocaram o personagem principal aquém daqueles que foram seus melhores dias.
E talvez essa seja a grande mudança, já que o foco de tudo passa a ser o Capitão Kirk, com um encontro com um antigo amor (e até um filho), sua inteligência sendo colocada em prova e a grande ameaça até sendo em razão de um ato seu. E como estamos falando de um humano falho e previsível, ainda mais dentro da bidimensionalidade que sempre caracterizou o personagem, A Ira de Khan”, na ânsia de carregar sua trama de modo clássico, esquece que o melhor da franquia está, justamente, ao redor do protagonista e não dentro dele.
Pior ainda, diante disso, Meyer acaba nem percebendo a genialidade do trabalho de Montalban e o monte de possibilidades que o vilão teria ao invés de ficar sentado em sua poltrona na ponte de comando durante a grande maioria do filme, e mesmo assim sendo eternizado. Assim como nem parece se importar com insossa vulcana criada por Kirstie Allen, que não acrescenta absolutamente nada à trama e o faz com um mínimo esforço preguiçoso, uma pena, já que ela acaba tirando o espaço de alguns personagens clássicos que se mostrariam muito mais divertidos em quaisquer que fossem suas obrigações dentro da trama.
Mas tudo isso é “chorar pelo leite derramado” e o esforço real de Jornada nas Estrelas – A Ira de Kahn não parece nem por um segundo ser o de se tornar uma obra a ser lembrada dentro de qualquer gênero (seja ação, ou seja ficção científica), mas sim presentear os fãs da série clássica com um final que o garantiria no coraçãozinho trekker de todos os fãs pelo mundo. Que, realmente, é emocionante e se molda para colocar o momento em que Spock e Kirk juntam suas mãos, separados pelo vidro e resumindo essa amizade que fere a lógica do Vulcano e obriga o outro a aceitar a lógica daquele sacrifício.
Um momento que torna o filme inesquecível, mas bem longe de surtir o mesmo efeito nos outros 100 minutos de história.
Star Trek II: The Wrath of Khan (1982), escrito por Harve Bennett, Jack B. Sowards e Samuel A. Peeples, dirigido por Nicholas Meyer, com William Shatner, Leonard Nimoy, DeForest Kelley, James Doohen, Walter Koenig, George Takei, Nichelle Nichols, Bibi Besch, Merrit Butrick, Ricardo Montalban e Kirstie Alley