Jornada nas Estrelas – O Filme

Depois de ganhar uma segunda chance em mais três temporadas, Jornada nas Estrelas (Star Trek) acabou virando um sucesso, um pouco por suas reprises, mas muito mais por ter feito algo que a TV americana não achava fácil: achar vida inteligente entre seus jornada-nas-estrelas-o-filmeespectadores.

Isso não impediu seu cancelamento, mas tampouco impediu que a marca criada por Gene Roddembery ganhasse o mundo, e consequentemente os cinemas do mundo. Porém isso só aconteceu quase uma década depois, um tempo de espera que valeu, já que Jornadas nas Estrelas – O Filme não só foi um sucesso, como uma irretocável homenagem à série. A começar por quem iria comandar isso.

E se a ideia era levar esse mito para as telas do cinema, realmente, começar com o nome de um outro mito como Robert Wise representava um passo firme e tremendamente acertado. Não só por, antes mesmo da série existir na TV o diretor já ter em sua prateleira dois Oscars, mas também por levar com ele um olhar sensível, e não o de alguém em busca de fama e dinheiro.

Principalmente se for levado em conta que 1977 foi ano de uma certa “guerra nas estrelas”, e o filme de “Kirk e Cia.” chegaria aos cinemas apenas dois anos depois, o que poderia se tornar um terreno aberto para aproveitadores.

Wise então era o nome mais correto, já que percebeu perfeitamente que Kirk, Spock e a Enterprise estavam em uma jornada, não em uma guerra. E não existiria começo melhor para essa série de filmes levarem aos cinemas aquela tripulação clássica que foi onde homem nenhum jamais esteve.

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Se a não ser alguns trekkers pelo mundo sabem desvendar essa tal de data estelar, bem diferente disso, a chegada da série aos cinemas era a tentativa de conquistar um mercado muito maior que o dos sofás das casas americanas (e nessa época, também os pelo mundo, já que a série era um sucesso em todos lugares). Portanto, manter o que mais caracterizava a série acabava sendo uma aposta arriscada, porém extremamente certeira.

Se ninguém esperava grandes batalhas pelo espaço era isso que O Filme faria. E foi isso que fez. Melhor ainda, não só levou todo tom pacifista e esperançoso da série, como buscou discutir conceitos tão profundos e corajosos que, muito provavelmente, hoje, ainda teriam dificuldade de serem engolidos. E isso só poderia acontecer, pois Wise tinha a percepção clara de que “Jornada nas Estrelas” era sim uma série melancólica sobre personagens que eram humanos demais para estarem ali naquelas situações, onde, geralmente, os clichês recorreriam a estereótipos heroicos e vazios.

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Jornada nas Estrelas – O Filme acaba então sendo a adaptação perfeita de um material que só conseguiria ter, exatamente, esse tratamento, ou senão amargaria uma decepção para os fãs e um desperdício diante da enormidade de possibilidades.

É lógico que isso custa, então, boa parte do ritmo do filme, lento, calmo e quase contemplativo. Que logo de cara castiga os inimigos clássicos da Frota Estelar, os Klingons, por atirarem primeiro e nem ao menos perguntarem. Não só para mostrar a grandiosidade da ameaça que move o filme, como também para lembrar a todos que se você estava em busca de uma guerra, estava na data estelar errada e devia procurar “a long time ago in a galaxy far, far Away”.

“Jornada nas Estrelas” era sobre outro procura.

Vida Longa e Próspera

É lógico que “Jornada nas Estrelas” é sobre o famoso Capitão Kirk… bom, pelo menos a série era. “O Filme” decide então ser sobre algo mais que isso, o que acaba sendo uma sorte da produção, já que mesmo depois de todos os anos de experiência Willian Shatner continuava canastrão e só não deixava o personagem cômico pela força e importância dele. E se alguém duvida disso, sua recepção do sempre ótimo Dr. McCoy é um dos momentos mais risíveis da história da franquia (quiçá do cinema, disputando esse lugar com ele mesmo, em uma charmosa virada para a câmera no terceiro filme).

Mas enfim, é difícil acreditar que esse primeiro filme seja sobre kirk, por mais que seja ele quem tenha se aposentado e acabe voltando para comandar a Enterprise, tome as decisões certeiras e acabe sendo o gênio por trás da solução da grande questão que move a história. Entretanto, não se engane, Jornada nas Estrelas – O Filme é sobre o vulcano Spock.

Justamente sobre aquele personagem que começa o filme sentindo a presença de uma força enorme e que não consegue ascender dentro de sua própria espécie por não conseguir se livrar ainda de seus traços humanos. O que lhe impede de ser puramente analítico e sem qualquer emoção. Situação que emprega ao personagem uma sensibilidade e uma fragilidade que o persegue aos olhos do espectador.

Nem sua chegada sem a mínima simpatia de volta à nave que foi sua casa por cinco anos (ciclo de cada oficial da Frota Estelar), consegue enganar o espectador, que, muito provavelmente teve que engolir o mesmo sorriso amarelo de felicidade do capitão Kirk ao reencontrar o amigo e não perceber nenhuma felicidade nessa volta. Um arco dramático que se reflete, justamente, na grande ameaça do filme: essa massa de luz meio disforme que ruma para a Terra.

Enquanto a Enterprise precisa salvar o planeta e impedir que “O Intruso” (como é chamado em boa parte do filme) mantenha sua rota de destruição, o roteiro dá sua tacada de mestre, não só por aproximar Spock e O Intruso, mas sim por fazer o segundo ir em busca de, ninguém mais, ninguém menos, que O Criador. Portanto, nada de fugir de uma das principais lições que a ficção científica aprendeu em todos seus anos de vida: a inquietação.

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Lógico que essa é um analogia a Deus, e é isso que os fãs mais esperavam: colocar aqueles personagens em uma situação onde nada fosse resolvido com um raio laser e uma explosão. Com isso, enquanto esse “planeta”, V´Ger (O Intruso) busca por uma explicação de o que ele é e o que além dele pode existir, e por mais que em certo momento o espectador seja obrigado a engolir uma “motivação Tostines” (com ele em busca do Criador e o Criador sendo aquele que é procurado), a solução, quando chega, coroa uma tentativa sensacional de criar algo além de simplesmente um vilão, mas sim uma ideia a ser discutida.

É claro também que por muito tempo todos são obrigados a se contentarem com essa primeira e parca explicação (“Tostines”), ainda mais quando ela se mistura a uma falha no ritmo que faz a história preparar demais o primeiro contato com o esse vilão e quando isso acontece, pelo menos em termos estéticos, tudo isso acaba dando alguns passos para trás e se obrigando a aceitar aquilo que já tinha em mãos. Pelo menos, o que vem depois recompensa esse escorregão e essa espera. Principalmente para Spock.

Depois de fugir e cada vez mais se afastar dessa humanidade que o renegou dentro da própria raça, deixar o personagem perceber que lógica e conhecimento não são suficientes, é um presente para os fãs do personagem. Mesmos que veem crescer sobre seus olhos uma tridimensionalidade que o marcaria para o resto da franquia.

Ainda que em toda sua insignificância perante V´Ger, Spock percebe antes do “ser” que tudo pode ser vazio, sem a beleza, sem o sentimento, sem o significado e sem a esperança. Um aperto de mãos que, definitivamente, cria uma das relações mais honestas que o cinema poderia dispor entre um alien e um humano (ainda que Shatner não consiga demonstrar qualquer sentimento).

E se isso ainda é pouco para um filme de ficção científica que poderia ser comum, é por que ele ainda não chegou à parte em que o espectador descobre que a grande motivação do vilão (ou antagonista, se e que isso cabe em um caso tão bem trabalhado como esse) é capturar seu próprio Deus e se tornar algo mais que “apenas artificial”. Nem que isso signifique encontrar falhas dentro de uma lógica e aceitar que exista algo maior que a própria, ainda que inexplicado.

Melhor ainda, Jornada Nas Estrelas – O Filme faz isso sem, nem por um segundo, se tornar refém de qualquer tipo de ideologia ou religião, apenas pelo prazer da discussão e da possibilidade de colocar em cena um vilão tão complexo que, verdadeiramente, nem é um vilão, mas sim uma criança em busca de perguntas, já que já obteve respostas demais. “Problema” que assola “uma outra” espécie do universo: o ser humano.

Entretanto

E como sempre existe um “porém”, Jornada nas Estrela – O Filme, além de um primeiro ato um tanto quanto arrastado, ainda peca em aceitar demais uma dramaticidade exagerada e esquecer que, muitas vezes, o melhor de tudo não precisa ser mudado, mas sim aproveitado com estilo.

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Ainda que tenha sensibilidade de recorrer quase a um balé espacial para mover a Enterprise e aceitar esse lado calmo e contemplativo (à Lá “2001”), como se não se cansasse de olhar para essa nave, para o espaço e valorizar aquela mesma beleza que é citada por Spock em certo momento, Wise acaba se deixando levar demais por esse desejo de fugir da ficção comum.

Ao invés da melancolia de alguns personagens ele não parece se incomodar com um destino extremamente trágico de um teletransporte que dá errado, ainda que isso não sirva para absolutamente nada no resto de sua história. Assim como não se incomoda de dar um tchau para o Planeta Terra com uma olhadinha pela “câmera traseira” da Enterprise, coisa que, mesmo com muito significado, acaba soando tremendamente melodramático e até bobo.

Exagero que, ironicamente, bate de frente com o próprio Capitão Kirk pedindo “luz padrão, por favor” ao ser surpreendido pela clássica luz avermelhada piscando diante do perigo. Como se lembrasse de que não há motivo para pânico. Reação que acaba até sendo bem humorada diante do cenário geral, principalmente quando se percebe que a ideia de Wise e seu “Jornada nas Estrelas – O Filme” é, justamente, se distanciar de qualquer coisa que possa desviar a atenção, preferindo até acabar com os divertidos uniformes coloridos e optando por uma entediante padronização do vestuário da Tropa Estelar (coisa que só foi “arrumada” por J.J. Abrams no filme de 2009).

Mas talvez isso seja apenas um pequeno pecado diante do impecável resultado de carregar essa série de TV cult para as telas e entender o que ela precisava realmente para fazer jus à suas raízes, ainda que essa acabe sendo a única tentativa disso no cinema, já que no resto dos filmes que viriam a seguir, seus fãs tiveram que aceitar que raios lasers, vilões e grandes batalhas espaciais atropelariam essa calmaria contemplativa.


Star Trek: The Motion Picture (1979), escrito por Harold Livingston e Alan Dean Foster, dirigido por Robert Wise , com William Shatner, Leonard Nimoy, DeForest Kelley, James Doohen, Walter Koenig, George Takei, Nichelle Nichols, Persis Khambatta e Stephen Collins


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