Lembro Mais dos Corvos | A humanidade através de uma câmera


[dropcap]L[/dropcap]embro Mais dos Corvos é aquele documentário minimalista ao máximo que lembra que Cinema pode ser apenas uma câmera filmando e uma pessoa falando, e se essa ideia não lhe apetece fique longe desse filme. Contudo, esteja avisado também disso: esse é provavelmente um dos filmes mais humanos que você irá ver esse ano.

Isso porque o diretor Gustavo Vinagre resolve realizar este documentário sobre essa atriz que aparentemente também é sua amiga, e aparentemente sem um roteiro definido. E se digo que tudo é aparente é porque quando sentamos em uma poltrona no cinema nosso cérebro está programado para pensar em termos de ficção ou pelo menos, nos documentários, uma narrativa controlada e parcial. Não há um acordo prévio de estabelecer um contato tão próximo assim com um ser humano, como quando fazemos de chamar alguns amigos para beber um vinho e casa e conversar sobre a vida. E mesmo nesse encontro hipotético e casual, tomando quantas garrafas de vinho que for, é muito difícil que a conversa gire exclusivamente sobre a vida pessoal de um deles.

Mas é exatamente isso que Gustavo faz, o que deixa Julia apreensiva em alguns momentos, além de não saber muito qual rumo tomar ao tentar atender o desejo do diretor: que ela fale tudo sobre ela.

Porém, Julia parece uma mulher forte. Talvez não em um primeiro momento, no começo, mas certamente ao final do filme. Isso porque ouvimos sua história de vida. E não é bonita. Envolve abusos quando criança, tentativas de suicídio e a falta de apoio da família. Boa parte do material é barra pesada, e como espectador não estamos certos se tudo aquilo é necessário ser exposto.

Como havia falado, não estava combinada essa intimidade do espectador com um ser humano. Não nesse nível. Ao sentir empatia por quem fala através da câmera, nos sentimos um pouco cúmplices do diretor por “deixá-lo” colocar Julia nessa situação. E um pouco culpados por isso.

Sentimentos e pensamentos fluem conforme a diretora, atriz e roteirista Julia Katharine recebe uma equipe de filmagem em sua casa, abre um vinho rosé e começa a falar de sua vida. O filme flui naturalmente, com exceção de um longo plano final sem razão aparente. Talvez o diretor queria que nós refletíssemos, mas essa parte ele não conseguiu controlar.

Nesse momento eu me lembro que deveria contar a vocês que Julia é uma transsexual, que nasceu homem e se tornou mulher. E nesse momento eu não me sinto à vontade para fazer isso. Talvez receoso ao saber do preconceito coletivo de que a própria Julia falou, em que as pessoas pensam que transsexuais pensam e falam 100% de sexo. Bom, pra ser sincero, ela fala uns 50% durante o filme. Mas não é isso que vem ao caso. O constrangimento surge para mim porque esse é um detalhe que talvez faça diferença para você, leitor, mas que não deveria.

“Este é um filme sobre um ser humano que foi machucado e que se machucou em boa parte de sua vida e que ressurgiu do outro lado mais fortalecido.” Esse é o resumo que faria justiça ao filme. Ser transsexual é um detalhe da vida de Julia como viver um tempo no Japão, por exemplo. Mas tanto viver no Japão quanto ser trans são eventos e características que dizem respeito apenas a ela. Sua sexualidade não deveria ser uma bandeira política, como se costuma fazer nos dias de hoje, e a naturalidade com que ela aborda esses dois assuntos de sua vida, assim como muitos outros, é tocante, e isso é o que deveria importar mais.

A câmera de Gustavo intimida. Ela faz zoom, ela acompanha Julia se trocando, ela pausa por um bom tempo em seu rosto. Talvez ele esteja dizendo algo aqui. Algo sobre a insistência em tentarmos dissecar um ser humano mesmo sem a menor capacidade de entender a nós mesmos? Só um chute.

Uma madrugada em São Paulo e uma entrevista íntima e pessoal com Julia Katharine. Seguido de um curta de quase meia-hora de sua autoria (espero que quando estreie esteja junto também). A sensação é ter conversado a noite inteira com este ser humano talentoso em saber viver (apesar dos infortúnios) e em seguida observar uma de suas criações. É humanizar demais o Cinema. É arriscar demais se aproximar de um ser humano. Esteja avisado.


“Lembro Mais Dos Corvos” (Bra, 2018), escrito por e dirigido por Gustavo Vinagre, com Julia Katharine.

Trailer – Lembro Mais Dos Corvos

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