Lindinhas | Cuties ou Mignonnes, buscando sua personalidade


A identidade é algo doloroso. Entender quem você é e ter que lutar contra o que esperam que você seja, pode te esmagar contra as pressões de uma sociedade que te mastiga, mastiga, mastiga, até te cuspir para fora. Mignonnes nasceu com esse título, mas seu primeiro contato com o público foi no Festival de Sundance, atendendo pela alcunha de Cuties. Agora chega ao Brasil com o nome de Lindinhas, mesmo que na Netflix ele mantenha seu título original.

E talvez seja isso mesmo, o filme escrito e dirigido por Maimouna Doucouré seja aquilo que um monte de gente acha que ele é, mas todos se esquecendo de perguntar para ele o que ele quer realmente ser. Independente do título, ele é sobre uma garotinha de 11 anos buscando sua própria identidade.

O filme renasceu diante de polêmicas políticas em meio a uma suja eleição americana. Serviu de arma para uma ala extremista dos republicanos apontar o filme como pró-pedofilia e bancado pelos democratas/esquerda igualmente pró-pedofilia. E não fique muito feliz com a distância de toda idiotice, porque no Brasil, nossos “cidadãos de bem” já entraram na mesma onda. De qualquer jeito, a ausência completa de sentido das acusações serve para que Lindinhas seja ainda mais relevante nas discussões que busca.

Seu esforço é mesmo o de se desgarrar das amarras desse moralismo preconceituoso que não entende a rede de ódio que está construindo. Amy (Fathia Youssouf) é uma imigrante senegalesa que chega à França com sua família. Seu pai ficou para trás, mas mais tarde ela irá descobrir que ele se casou com outra mulher, coisa permitida dentro da religião, mas que faz com que Amy coloque ainda mais em questão a justiça desse mundo que está descobrindo só agora.

Amy é criada para ser uma mulher perfeita dentro islamismo, com a cabeça coberta nas reuniões com outras mulheres e a impressão de que terá que viver uma vida servindo aos homens, como se fosse apenas uma cozinheira ou babá. Tudo isso ao mesmo tempo em que descobre o quanto pode fugir disso tudo através de um grupo de dança que forma com algumas novas amigas.

Um caminho que, infelizmente, confunde liberdade com um lado obscuro da própria personalidade de Amy. Aos poucos, sua jornada coloca em risco sua inocência. Mesmo com a mais tenra idade, acaba se colocando em uma encruzilhada entre as tradições familiares e uma hipersexualização que vem embalado pelo conectado século 21. Uma garotinha de 11 anos que decide que irá se tornar uma mulher sem perceber os danos que isso irá causar em sua vida.

Descendente de senegaleses muçulmanos, a francesa Maimouna  Doucouré busca o desconforto dessa sexualização e faz com que esse incômodo tome parte dessa garotinha protagonista, como se ela enxergasse apenas essa opção deturpada como fuga das dores de sua vida. Doucouré não desvia o olhar dos piores momentos, embrulha o estômago e oferece a vaia em público como conclusão trágica. Mas não julga, apenas tenta entender.

A lágrima que abre o filme é a mesma que fecha esse arco, dolorida, cansada de ser aquilo que todos querem que ela seja, libertadora e sensível. O olhar moralista de enxergar que aquelas crianças são pequenas capsulas de tudo que os adultos querem, mas que não sabe conviver com isso quando tudo sai dos trilhos. Amy é ignorada pelo mundo, até que decide moldá-lo àquilo que acha que irá te trazer respeito e admiração, uma impressão de que os “likes” no Youtube não poderiam estar mentindo para essa jovem, principalmente, pois o outro lado só a oprime.

Doucouré ainda faz um trabalho incrível com as quatro mini-estrelas. Todas quatro são incríveis, cada uma com suas personalidades gigantescas e uma sensibilidade à flor da pele. Cada uma delas vive algum momento sensível e que deixam ainda maiores seus trabalhos. Tudo montado através de lagrimas e sentimentos. Todas nesse momento onde as dúvidas e questionamentos podem lhes carregar para aquela mesma escuridão de Amy e nenhuma delas se esconde por trás de um atalho de interpretação. Um resultado visceral e que torna a jornada ainda mais dolorida poderosa.

Principalmente, pois Doucouré mostra não só a liberdade que elas atingem, mas o fundo do poço, os horrores que o mundo pode trazer para essas garotinhas, que com certeza nunca mais serão as mesmas. Amy não vê obstáculos para seu sonho de se tornar outra pessoa. Mas descobre isso junto com o vazio das luzes e desse mundo que não se importa de sexualizar pequenas garotinhas para sua vã diversão.

Mas a fuga real de Amy passa por perceber que ainda há espaço para ser salva por aqueles que a oprimiram, basta que lhe seja dada a opção de vestir uma calça jeans e ser aquilo que ela realmente queria ser desde o começo: só uma criança.


“Mignonnes” / ou “Cuties” (Fra, 2019); escrito e dirigido por Maimouna Doucouré; com Fathia Youssouf, Médena El Aidi-Azouni, Esther Gohourou, Illanah Game-Goursolas e Myriam Hamma


Trailer do Filme: Cuties / Mignonnes / Lindinhas

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