A experiência de estar de frente com uma obra de Pedro Almodóvar é sempre única. Gostem ou não do resultado, o que sobra é sempre uma sensação de dever cumprido e de pensamentos e ideias que estarão impregnados na cabeça do espectador por horas e dias depois do fim. Não por serem complicados, mas sim por, como Mães Paralelas, estarem sempre ligados a filmes com as emoções nos lugares certos para que sejam sentidas.
Seu novo filme parece uma coisa e depois é outra, então passa a ser outra e volta para a primeira coisa enquanto você descobre que sempre foi pela mesma: a possibilidade de sentir.
No filme, Penélope Cruz é Janis, uma fotógrafa que, durante uma sessão com Arturo (Israel Eljalde), pede a ajuda dele para que seja possível uma escavação em sua cidade natal para procurar os restos mortais de seu bisavô e mais um monte de homens que sumiram durante a Guerra Civil Espanhola nos anos 30. Mas como o título diz, o filme não é bem sobre isso, mas sim sobre o filho que nasce do relacionamento dos dois.
Janis então conhece Ana (Milena Smit), uma jovem também prestes a dar a luz. As duas se tornam amigas no hospital e seus filhos nascem no mesmo dia. Mas também o filme não é sobre isso. É sobre mais.
A ideia do paralelismo do título é justamente enquanto acompanha parte da vida das duas durante o tempo que lidam com a maternidade, cada uma de modo diferente, com dificuldades diferentes, decisões diferentes e, principalmente, tragédias diferentes. O filme então talvez seja sobre perdas, o que o leva de volta à escavação.
Almodóvar, que também escreve o roteiro, caminha pelas histórias com uma facilidade impressionante, portanto, enquanto o filme não é sobre uma coisa, mais é sobre outra, isso nunca parece forçado ou desesperado, apenas sutil. E uma sutileza que, ironicamente, é o combustível de um filme que beira o melodramático e novelesco.
A direção do espanhol é pesada e dura, não quer fugir de seus personagens, mas sim olhar todos nos olhos, sentir todos. As cores e a trilha sonora de seu velho parceiro, Alverto Iglesias, forçam ainda mais a barra. Tudo parece pronto para estar no horário nobre da TV brasileira, mas como uma delicadeza e uma inteligência que nenhuma novela chega nem perto.
Não diminuindo as novelas, mas lembrando que nenhuma delas precisa de nada disso, bem diferente do filme de Almodóvar, que aos poucos vai criando, não uma sucessão de eventos, mas sim um emaranhado de emoções. Desde o luto e a perda, até a indignação política. Do feminismo e da causa feminina, até as violências e misoginias do dia-a-dia. Tudo está lá, claro como água, e isso incomoda.
Ana e Janis estão ligadas não só pelo dia do nascimento (e também por uma reviravolta da trama), mas sim por serem duas mães que foram abandonadas pela vida. Não só pela (não) presença dos pais das crianças, mas pela dor, já que, cada uma a seu jeito, foram produtos de pequenas (e grandes) violências contra elas. Almodóvar faz de Ana um produto único da violência física e emocional, já Janis, a coloca em um lugar onde a violência faz parte (literalmente) de seu DNA. Ambas são vítimas de uma sociedade que as violentou.
Mas ainda, Almodóvar as coloca em uma posição onde elas se unem para, literalmente, sentirem as mesmas alegrias e dores. São paralelas, mas estão tão próximas que é impossível desgrudar o que cada uma é e representa.
Entretanto, por mais que estejamos falando de um melodrama, estamos falando de um melodrama colorido de Almodóvar, e isso significa sempre uma obra madura e que não está preocupada com alguma reviravolta ou exagero. O choro em Mães Paralelas dura o tempo que a cena se sente confortável sendo adulta, depois disso, o diálogo e as resoluções reais tomam conta da trama. Isso pode parecer até meio anticlimático, mas é tão equilibrado e perspicaz que encanta a cada decisão.
Não existe o cansaço da reviravolta forçada, mas sim o prazer do bom senso narrativo. E quando você menos espera, é com essa mesma clareza que Mães Paralelas volta àquele começo para ligar tudo e se fazer entender. Não só um “palito de DNA” liga todas essas histórias, mas sim a possibilidade de sentir, olhar para trás e entender o que aconteceu, por mais doloroso que seja.
A escavação na cidade natal de Janis não é catártica, mas sim sensível e emocional. Do mesmo jeito que a verdade da relação das duas personagens quando ela vem à tona. Não existe surpresa, ou talvez exista, mas é uma surpresa pela trama seguir seu caminho natural e carregar o espectador por um caminho que deixará todos pensando sobre ele durante horas e dias. A experiência de estar frente a frente com um filme do Almodóvar é sempre única mesmo, portanto, aproveite cada oportunidade.
“Madres Paralelas” (Esp, 2021); escrito e dirigido por Pedro Almodóvar, com Penélope Cruz, Milena Smit, Israel Elejalde, Aitana Sánchez-Gijón e Rossy de Palma