Marte Um | Crítica do Filme | CinemAqui

Marte Um | “A gente dá um jeito”


Enquanto os dois amigos de Deivinho (Cícero Lucas) descem o barranco em suas bicicletas sem freio, ele vai atrás, com os pés no chão, segurando a velocidade, deixando seu medo tomar conta de si mesmo. Até porque sabe o quanto esse é um caminho sem volta. Marte Um é também um caminho sem volta.

Eunice (Camila Damião) é a única irmã de Deivinho, estudante de direito que decide tirar os pés do chão e deixar a bicicleta ir no barranco enquanto se apaixona por outra garota e decide ir morar com ela, deixando a casa dos pais.

A mãe, Tércia (Rejane Faria), diarista e que acaba caindo em uma pegadinha da televisão, o que a faz colocar em discussão sua própria mortalidade e o quanto isso pode ter que significar mudanças.

Por fim, Marte Um nos coloca ao lado do pai, Wellington (Carlos Francisco), porteiro de um prédio chique, alcoólatra, cruzeirense e colocando todas suas esperanças na potencial carreira de Deivinho no futebol. Mas talvez não seja isso que Deivinho quer, já que ainda está lá parado no barranco, segurando a bicicleta com os pés.

O filme escrito e dirigido por Gabriel Martins em seu primeiro voo solo (depois de Coração do Mundo e O Nó do Diabo em parceria com outros cineastas) é um estouro de realidade enquanto acompanha esses quatro personagens em suas ladeiras. Dali do chão da periferia mineira, o diretor entende dores tão universais que é difícil não ser tocado por nenhum sentimento enquanto Marte Um te convida para essa viagem sem volta.

Uma história que coloca essas pessoas não em uma encruzilhada, mas em um barranco mesmo, sem possibilidade de frear ou voltar atrás. A única opção é seguir em frente. Tudo isso diante de um elenco afiado, incrível e que empresta uma verdade absolutamente apaixonante para a experiência final. E quanto mais a câmera de Martins se deixa levar por esses personagens, mais o espectador se apega a essas jornadas.

Marte Um |

Tudo isso em meio aos primeiros dias pós uma eleição que levou ao cargo de presidente um político que conversa diretamente com uma parcela da sociedade que se sente confortável em ignorar a existência e as dificuldades de gente como Deivinho, Eunice, Tércia e Wellington, tanto em termos étnicos, quanto sociais. Marte Um não é político por mostrar a apuração dos votos e a posse do mesmo na TV no fundo da história desses personagens, mas sim por dar voz a esses personagens.

Enquanto Deivinho e Eunice estão crescendo e tentando descobrir o caminho que irão tomar, os pais precisam lidar com verdades que são maiores que ele: aquele mundo onde estão, não se importa com eles. Deivinho e Eunice talvez ainda não tenham descoberto isso, ainda têm sonhos e esperanças. Os pais não, pelo menos não mais. O que não quer dizer que essa vontade de prevalecer não possa voltar. Basta soltar os pés do freio.

O roteiro de Gabriel Martins não é óbvio ou escrachado em absolutamente nenhum momento de seu filme, confiando na inteligência de seu espectador e sabendo que não tem em mãos uma história que possa ser contada com exposição, mas sim com sentimentos. A ideia é ver esses freios sendo soltos aos poucos, não como em uma grande corrida, afinal não existe pressa, apenas uma vontade de chegar lá embaixo.

Essa mortalidade melancólica da mãe acaba se tornando um perigo real mais para frente, mas isso não move a trama, apenas dança com o filme nessa sutileza quase metafórica onde ela entende realmente seu papel naquele mundo. De um jeito ou de outro o mesmo acontece com Wellington, sua morte alegórica o coloca tentando subir aquela ladeira sem tração ou força suficiente para tal incursão. Voltar não é uma opção quando se tem tão poucas oportunidades.

O título do filme vem de uma missão de exploração à Marte. Vem também do sonho de Deivinho de participar dessa missão depois de se tornar astrónomo. Dito ali, da quebrada mineira, parece até irreal, mas é a única coisa que deve movê-lo. Aquele combustível para ele tirar os pés do chão e descer o barranco.

No último e delicado momento de Marte Um, Deivinho cita que serão preciso milhões de dólares para que ele consiga realizar seu sonho, a reação do pai é a mesma que uma nação de esquecidos toma como mantra diário: “Vai, a gente dá um jeito”. Enquanto isso a mãe pega no sonho depois de dias sem dormir assolado pela ansiedade. Encontra a paz agora que tudo está no lugar.

Marte Um é um retrato do Brasil em todas suas metáforas, a TV ao fundo dos personagens está te dizendo isso o tempo inteiro, mas é o final dele que te dá aquela esperança de que se você tirar os pés do chão e deixar a bicicleta te levar, talvez você se machuque, mas depois tudo vai dar certo. A gente dá um jeito.


“Marte Um” (Bra, 2022); escrito e dirigido por Gabriel Martins; com Cícero Lucas, Carlos Francisco, Camila Damião, Rejane Faria e Russo APR


Trailer do Filme – Marte Um

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