A mente humana é um labirinto. Meu Pai é sobre não só isso, mas também o quanto esse labirinto pode se tornar uma jornada sem saída diante da degradação provocada por uma doença que coloca o protagonista em uma situação desesperadora onde a realidade e a ficção deixam de fazer sentido.
O filme é baseado na peça escrita pelo próprio diretor Florian Zeller e coloca Anthony (Anthony Hopkins) no foco dessa situação dolorida e delicada onde um homem octogenário precisa desvendar sua própria mente. Não conscientemente, mas na tentativa de se agarrar ao fio de sanidade que ele acha existir. Olivia Colman vive, Anne, sua filha, presa diante da encruzilhada de ter que se mudar para Paris, mas antes conseguir encontrar um lugar onde seu pai possa ser cuidado.
Mas Meu Pai é construído quase como uma farsa onde o espectador é colocado na mesma situação de Anthony. A imersão é tão poderosa e o cuidado com a ideia de deslocar o espectador por dentro da mente do personagem do modo mais sutil possível faz do filme uma experiência impecável, porém desesperadora.
Quanto mais você acompanha essa jornada para dentro da mente dele, mais você é pego nas mesmas armadilhas e mais se sente tão perdido quanto o protagonista. O roteiro do próprio Zeller em parceria com Christopher Hampton cria esse emaranhado de situações que parecem não se encaixar e, a cada passo, criam ainda mais essa impressão de que algo que está errado, mesmo sem parecer. Um filme onde as impressões são um jogo onde nada é o que parece.
Essa intenção se junta ao trabalho preciso da direção de Zeller. Quanto mais tudo aquilo parece rumar para uma mínima normalidade, mais o espectador é arrancado dela com uma violência que quebra qualquer expectativa. Um resultado habilidoso e que sabe trabalhar bem com as impressões e com a construção dessa quebra e da ideia de que nada daquilo é o que parece. Meu Pai é uma espiral de emoções em que o espectador é convidado a sentir o mesmo que o protagonista, mesmo com toda tristeza que isso traga.
A possibilidade de criar essa impressão visual ainda mais emaranhada vem também do esforço descomunal da criação desse apartamento onde a ação se passa. Mesmo caindo no clichê de apontar ele como um personagem por si só, suas transformações e o uso dele como algo palpável dentro da suposta sanidade, uma âncora do personagem, mas que, ao mesmo tempo, dá as dicas do inevitável. Algumas construções do roteiro e momentos onde o nó na mente do protagonista dita a cena, não seriam possíveis sem a força visual daquele lugar onde Anthony se sente tão confortável.
Mas, assim como o próprio Zeller declarou antes do começo das filmagens que não existiria esse Meu Pai sem a presença de Anthony Hopkins, é dele a responsabilidade de ser o ponto central dessa experiência sensível, delicada e emocional. Não existe nada acima de Hopkins no filme de Zeller, e isso é o ponto alto do filme, o quanto celebra essa lenda do cinema com a possibilidade de uma atuação tão incrível e tão poderosa.
Mesmo diante de uma carreira de seis décadas só no cinema, não é exagero apontar seu Anthony em Meu Pai como um dos seus mais impressionantes trabalhos. Diante da possibilidade de criar um homem complexo e preso dentro desse labirinto, Hopkins vai do simpático e amoroso ao traço mais horroroso e vil de sua personalidade com uma facilidade assustadora e destruidora. Cada próximo passo de seu personagem se torna uma surpresa sutil e que guarda dentro de si uma quantidade incontável de personalidades dentro daquele homem tendo que lutar para entender quem ele realmente é.
Mas mais do que isso, não existe durante a maior parte do tempo um esforço para redimir o personagem dentro de sua mente. Tudo é apenas um caminho em linha reta onde o Anthony do ator britânico vai apenas em frente, encontrando os melhores atalhos para manter sua sanidade. Ao lado dele, colado, está o espectador, cada vez mais perdido nos mesmos sentimentos. A tristeza da realidade se desvenda como um soco no estômago e a dor é sentida tanto por ele, quanto por quem está do lá de cá da tela.
Acordar desse pesadelo não é encontrar a saída do labirinto, mas sim ter que aceitar a completa destruição da mente e a impressão de que, assim com o monólogo final, é preciso se agarrar àquilo que se tem em mãos, mesmo que não seja aquela sanidade que você está acostumado a entender. Meu Pai é uma experiência real, e isso é mais que suficiente para torna-lo imperdível e inesquecível.
“The Father” (UK/Fra, 2020); escrito por Christopher Hampton e Florian Zeller, a partir da peça de Florian Zeller; dirigido por Florian Zeller; Com Anthony Hopkins, Olivia Colman, Mark Gatiss, Olivia Willians, Imogem Poots e Rufus Sewell