O novo filme de Jordan Peele começa com um macaco coberto de sangue após ter matado parte do elenco de uma série de TV da qual ele era a estrela. Lá no fundo da imagem, um sapato, em pé, meio que por algum milagre misterioso da gravidade. Não, Não Olhe não explica nada sobre o sapato. O resto sim, e a diversão está nesse lugar.
E o que a Bíblia tem a ver com isso, já que o filme cita Naum 3:6, suas imundices, desprezo e a ideia de fazer disso um espetáculo? Parece que nada, mas Peele confia em seu espectador e lhe deixa mergulhar nesse filme de terror que não parece pronto para mastigar seu lado cíclico.
Tudo em Não, Não Olhe está ligado. O chimpanzé da série é Gordy e um dos únicos sobreviventes de seu ataque é o ex-astro mirim Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun), hoje, dono de um parque temático que é vizinho da propriedade da família Haywood, treinadores de cavalos para séries e filmes.
E se tudo ainda não parece se ligar, é porque Jordan Peele, que escreve e dirige, quer que seu espectador vá ainda mais fundo naquilo que pode (ou não) ser um significado. Principalmente quando OJ Haywood (Daniel Kaluuya) começa a desconfiar que um OVNI está sobrevoando sua fazenda e até capturando seus cavalos. Isso faz com que ele e sua irmã, Emerald (Keke Palmer) coloquem em ação um plano para captar em vídeo a presença desse disco voador.
Peele estabelece esse monte de dúvidas, mistérios e provoca no espectador um sentimento de labirinto. Onde quer que ele esteja indo, é impossível adivinhar o que vem depois da esquina. E o que vem é diferente de absolutamente qualquer coisa que o gênero já tenha feito. E para isso, entre uma chuva de sangue e muito suspense, o cineasta busca quase uma anedota.
Sua trama é farsesca, quase como se risse de si mesma. E é impossível falar disso sem deixar passar algumas surpresas de Não, Não Olhe. Principalmente, pois tudo que está se colocando na tela, volta como se fosse uma piada.
Gordy era a estrela da série de TV, mas seus instintos não lhe permitiram manter afastado de seus parceiros sua selvageria. “Jupe” está presente, sobrevive ainda garoto, mas não consegue lidar com a tentação de fazer o mesmo anos depois com o disco voador. Mas como OJ lembra “não é possível adestrar completamente um predador”. Mas quem será o predador?
OJ e a irmão resolvem caçar o OVNI (a essa hora já não mais “não identificado”), mas não para colocar fim ao inimigo e sim encontrar o “Money Shot”, aquele pedaço de filme onde todo esforço se torna o clímax para o espectador. Ou como eles preferem, “Oprah Shot”. Aquele espetáculo lá da Bíblia volta mais uma vez à fila da frente. É tudo pelo espetáculo, não existe nada além disso, apenas o que se torna show.
Peele parece se divertir com esse emaranhado de ideias. Como se fosse costurando referências internas e externas para que o espectador se perca em Não, Não Olhe. A tradição da família Haywood, supostos descendentes do jóquei negro daquela famosa montagem de fotos em movimento de 1877 feita por Edweard Muybride, é mentira, mas ajuda a colocar os Haywoods dentro dessa indústria de apagamento. Ninguém sabe o nome do tataravô deles, portanto é preciso agora tomar um outro caminho. Por isso é tão fácil entender a necessidade deles de enfrentar o OVNI através da exposição.
Enquanto Não, Não Olhe se torna quase um slasher, Peele não esconde suas vítimas através dos subtítulos. A piada reside justamente em apresentar quem será o alvo desse assassino… a não ser o Lucky, que como o nome já diz, é sortudo. Portanto, nem as certezas que Peele expõe são certezas reais. O espectador, assim como os “espectadores” do show de “Jupe”, estão em perigo, já que não sabem o que virá em seguida.
O contato imediato de OJ com alguns aliens não é nada aquilo que se espera, mas Peele trata aquilo com segurança, tensão e seriedade. Um momento realmente assustador e que coloca o espectador na ponta da poltrona, mas nada é o que parece, como absolutamente tudo em Não, Não Olhe. Quando você menos espera, está dentro do OVNI, na verdade, do extraterrestre, e mais uma vez o filme te joga para um outro lugar, ainda mais esquisito. São nesses momentos, diante do improvável, que seus personagens batizam o filme com o “nope” do título original. É difícil acreditar que Peele está levando as pessoas dentro do cinema para esse lugar. E isso é uma experiência imperdível para os fãs do gênero.
Tudo isso à luz do dia (na maioria do tempo), já que os espetáculos precisam ser vistos. Peele, com a ajuda do diretor de fotografia Hoyte Van Hoytema (parceiro de Christopher Nolan em vários filmes), cria um filme com um visual limpo, claro e, justamente por ir quase contra o gênero, desesperador. A clareza de Não, Não Olhe coloca o espectador em um lugar onde ele não está acostumado a estar, o de enxergar seu inimigo claramente, e quanto mais Peele expõe esse vilão, mais ele se torna algo ainda mais complexo e surpreendente.
Entretanto, quando a noite chega, Peele transfere essa clareza para um lugar que faz o espectador lidar com um lugar ainda mais perturbador, tenso e que aceita o gore (os gritos de dentro do “OVNI” são aterrorizantes!). Em ambos os lugares, Não, Não Olhe deixa seu visual claro lutar contra todos mistérios. O que está na tela é aquilo que está sendo visto, incluindo as dúvidas, referências e mistérios.
“Mistérios” ou como OJ aponta, “maus milagres”, algo que acontece, mas não é necessariamente bom. Ou talvez seja, é difícil apontar esse tipo de coisa. Na verdade, é difícil apontar qualquer coisa em Não, Não Olhe. Tudo está lá, não deixe de olhar, até porque, alguns detalhes do filme de Jordan Peele não te deixam tirar os olhos dele, como aquele maldito sapato, em pé, lá no fundo da cena, te chamando para ser desvendado. Como Não, Não Olhe.
“Nope” (EUA, 2022); escrito e dirigido por Jordan Peele; com Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Brando Perea, Micahl Wincott, Steven Yeun, Wren Schmidt e Keith David.