[dropcap]E[/dropcap]u entendo o porquê do lançamento de O Doutor da Felicidade ser direto para streaming: se trata de um filme com um quê televisivo, de baixa produção, e que não tenta esconder isso. O que eu não entendo é um ator com o carisma e talento de Omar Sy acabar participando deste projeto, sendo que ele próprio nos prova, através de uma cena linda perto do final do filme (você irá reconhecê-la pela frase “onde está o crime?” e pela possível referência a M, O Vampiro de Dusseldorf), que é capaz de participar de dramas mais formatadinhos.
Bom, estou constatando o óbvio, você que já o viu em Intocáveis, Samba, Chocolate, apenas para citar os onde ele aparece mais. Realizando uma escalada admirável em sua carreira, quase sempre preocupado em extrair o máximo de expressividade e carisma empacotados em uma força de vontade contagiosa (mesmo que ele esteja fazendo um imigrante ilegal à beira de passar fome), o ator francês tem potencial para percorrer os mesmos caminhos que uma Juliette Binoche percorreu ao longo das décadas, mesclando produções hollywoodianas com trabalhos mais intimistas.
E o filme do diretor/roteirista Lorraine Lévy não está em nenhuma dessas categorias. Baseado em uma peça de Jules Romains, de 1923, adaptada meia-dúzia de vezes no Cinema, e que originalmente era uma sátira sobre a hipocondria, este novo retrabalho do material tenta se manter no nível de um conto lúdico, mas também tenta passar uma lição de moral que não condiz exatamente com o que foi visto até então.
A história narra rapidamente a origem humilde e cheia de percalços de Knock (Omar Sy), que começa sendo chutado por dois capangas que cobram dele uma dívida de apostas. Encontrando sua saída em um navio que aceita qualquer pessoa que já tenha tratado alguém sob a alcunha de médico, o rapaz alto e saudável (e, essa condição é citada apenas de passagem, negro) irá aos poucos aprender a usar o vocabulário incompreensível da medicina para ludibriar seus pacientes.
Ao final da viagem, e cinco anos depois, o vemos como um Doutor formado que se encontra em mudança para uma cidadezinha cheia de ricos em volta. De acordo com ele, “uma mina de ouro”. Começamos a entendê-lo conforme ele se associa ao dono da farmácia local e à alta sociedade para convencer a tudo e a todos que “bom e saudável” é um termo não acurado para qualquer pessoa ainda viva.
O que se segue é uma bela história sobre falcatruas e o poder da criatividade, que ensina que quando se fala de saúde as pessoas ouvem atentamente e se deixam levar por qualquer discurso que indique que há algo de errado com elas. Ninguém quer ficar doente, mas o Doutor Knock insiste em deixar claro que todos os procedimentos, consultas e remédios que sugere são justamente para evitar a doença, ou uma possível situação menos que o ideal, em uma inversão de valores digna de um Lobo de Wall Street.
E é aí que reside o perigo desta versão da história, porque eventualmente surge a seguinte questão: o Doutor Knock é uma boa pessoa? Ele é o herói ou vilão? Fica difícil responder, mesmo nos tempos atuais de anti-herói. Isso porque no início o filme nos mostra que a cidadezinha vivia bem e que o objetivo principal (ou pelo menos inicial) de Knock obviamente é o lucro. Há pouco tempo de filme para que ele consiga nos convencer do contrário em qualquer um dos momentos em que a coisa evolui para algo mais complexo, mais ambíguo e mais humano.
Utilizando do começo ao fim uma trilha sonora equivocada, enlatada, que mescla sem qualquer critério drama e comédia (ambos leves demais para serem sentidos), a situação apenas se complica quando o filme decide utilizar momentos pontuais de comédia física que dão o tom adicional de comédia que não soa inapropriado, mas subverte ainda mais o que nós, espectadores, devemos sentir a respeito da figura principal da cidade. Claro, é preciso lembrar que os habitantes da cidade já são mais ou menos caricatos. Mas o que divide nossa impressão entre a simples caricatura para fazer rir e a fantasia ligeiramente exagerada para evitar nossa identificação?
Contudo, este é um filme agradável do começo ao fim. Mas este talvez seja para mim seu maior problema. Ele não ousa se aprofundar em nenhuma das questões que apresenta; até a própria hipocondria deixa de ser a vilã. Todos os esforços para criar tensão na história são deixados de lado pelo bem de um inusitado herói que ninguém pediu. O que nos volta a lembrar: é apenas conteúdo para TV. Ou, no caso, a TV dos dias de hoje: um serviço de streaming onde as pessoas estão distraidamente assistindo vários conteúdos. Este acaba virando apenas mais um.
“Knock” (França, Bélgica, 2017), escrito e digirido por Lorraine Lévy, à partir da peça de Jules Romains, com Omar Sy, Alex Lutz, Ana Girardot.