Em 1949, Joseph Campbell escreveu o O Herói das Mil Faces e citou, pela primeira vez na literatura algo chamado “A Jornada do Herói” (ou “Monomito”). Em 2013, o australiano Kim Mordaut lança seu filme de estreia O Foguete e assim deixa mais claro ainda que Campbell estava certo em cada uma de suas páginas: o herói e sua jornada são muito maiores que qualquer cultura ou mitologia.
E se essa afirmação já coube também na história de Bilbo e Frodo Bolseiro, Luke Skywalker, Rocky Balboa e até Jesus Cristo, agora é hora dela apontar o caminho desse pequeno menino do Laos, Ahlo. Que, desde seu nascimento é tido com amaldiçoado (na verdade algo como se “desse azar”), já que nasceu gêmeo e ao invés de ter sido sacrificado, diante da tradição de seu povo, acabou ficando vivo, já que o irmão morreu no parto.
Diante então de uma tragédia envolvendo sua mãe enquanto se mudam de sua vila (que dará lugar a uma represa) Ahlo, seu pai e sua avó (que tem certeza desse azar que o segue) acabam indo então em busca de um novo lugar para chamar de lar. Nesse caminho ainda encontram uma garotinha, Kia e seu tio, uma espécie (hilariante) de cover do James Brown, e juntos os cinco partem em busca dessa nova casa.
Em parte, então, “O Foguete é sobre esse grupo tendo que deixar suas terras e dando de cara uma nova casa que só está em um outdoor, e diante disso (e de uma outra e deliciosa motivação envolvendo uma TV) têm que seguir a vida. Mas mais do que isso o filme é sobre a jornada desse garotinho.
Um caminho que começa quando é chamado à “aventura” de sua vida (deixar a casa), encontra seu “mentor” (o “Tio Roxo”), cruza “um portal” (com a morte da mãe), é obrigado a viver nesse novo mundo cheio de testes e provações (o tal assentamento dado pela companhia dona da represa), encontra seu “objetivo” (a oportunidade de fazer o foguete), tem sua “provação” (enquanto entra em uma gruta e desafia os próprios medos), conquista sua “recompensa” (ou elixir, que é tudo que ele precisa para construir seu foguete), e, por fim, voltando para “o mundo”, usa tudo que aprendeu (que é aquela parte com spoiler que fala que ele ganha o “campeonato de foguetes” e assim prova que não é amaldiçoado).
Esse guia resumido da tal jornada (na verdade são 12 “passos”, e Campbell em seu livro ainda esmiúça isso em mais um monte de outros) só mostra que Kim Mordaut não simplesmente ligou sua câmera e deixou-a filmando, mas sim que fez aquilo que se espera dos grandes filmes (e grandes diretores): contou uma história. Uma que, a seu modo, nem é das mais descomplicadas, já que envolve um teor místico, discute a pobreza de um país e as cicatrizes deixadas por uma guerra (aquela do Vietnã), além de encontro a esse capitalismo descabido que afoga a história de um país (e seus templos) “pelo desenvolvimento”. E faz isso tudo somente pela segurança de quem tem que um herói nesse meio, um garotinho que irá conquistar a plateia com sua enorme personalidade e fara com que o cinema todo torça por seu foguete indo em direção ao céu.
E sim, tanto o protagonista, quando sua pequena companheira, Kia, irão conquistar qualquer plateia que der de cara com eles, ambos com uma segurança em cada gesto e frase que faz parecerem experientes em uma profissão que estreiam. E talvez isso venha a abrilhantar mais ainda o trabalho de Kim Mordaut nessa hora de dirigir seus atores, já que não só os dois fazem um trabalho excelente, como todo o resto do elenco também é ótimo.
Além disso tudo, O Foguete ainda tem a presença de espírito para ser sensível em praticamente todas suas motivações e resoluções enquanto carrega tudo com um clima de tremendo bom humor que dá uma leveza enorme a um assunto que poderia ser triste, mas que, no final das contas, é uma experiência otimista e “pra cima”.
Uma história sobre um menino que se indaga “por que eles têm luz e nós não” e com isso age e “resolve” esse problema. Uma história de alguém que sobreviveu ao nascimento, sobreviveu a toda aventura, ajudou todos a sua volta e acabou nos braços de uma multidão que descobriu algo que o espectador já tinha descoberto bem antes deles: que Ahlo é um herói nato. Daqueles que deixariam Joseph Campbell orgulhoso.
“The Rocket” (AUS, 2013) escrito e dirigido por Kim Mordaunt, com Sitthiphon Disamoe, Loungnam Kaosainam, Thep Phongam, Bunsri Yindi, Sumrit Warin e Alice Keohavong
Essa crítica é parte da cobertura da Itinerância da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo