O Milagre | Sobre histórias

A humanidade precisa de histórias para sobreviver. O Milagre, nova produção da Netflix é sobre histórias, mas também é sobre humanidade e o quanto ambos estão grudados para sobreviver.

Mas para fazer isso, o diretor chileno Sebastián Lelio (Uma Mulher Fantástica) e o roteiro dele com Alice Birch (a partir do livro de Emma Donoghue de O Quarto de Jack) procuram um caminho, no mínimo, excêntrico. Talvez isso tire muita gente de dentro do filme, talvez faça o contrário, mas não deixará ninguém sair ileso da experiência.

O Milagre começa no próprio set de filmagem, introduzindo o espectador na necessidade de escutar essa história enquanto a câmera busca o cenário escuro e sujo de um navio indo em direção à Irlanda. O que está de fora do filme rodeia essa história que será contada e ficará lá impresso na mente do espectador. A intenção pode parecer esquisita, mas desperta ainda mais as pessoas para a verdadeira intenção do filme: uma história.

Quem está cruzando o mar para chegar à Irlanda no final do século 19 é a enfermeira Wright (Florence Pugh), contratada por uma comissão de “homens poderosos” de uma vila para analisar um suposto jejum misterioso de uma garotinha, Anna (Lila Lord Cassidy). A enfermeira fará metade desse trabalho de análise, a outra metade será feita por uma freira.

O foco da trama não está na dicotomia entre ciência e religião, principalmente, pois está sempre grudada no ponto de vista da enfermeira, mas vai deixando ela descobrir o quanto seu trabalho poderá ser apenas o de espectadora dessa história. Wright não é contratada para agir, mas sim para assistir essa história. E essa é a dicotomia que move o filme.

É lógico que existe uma pressão por trás de toda escolha do conselho envolvendo a possibilidade da menina ser um milagre que vem para salvar a Irlanda pós um período de fome que assolou o país. Wright não está preparada para apenas observar essa história. O Milagre é sobre a história que ficará para a posteridade, não aquela que realmente aconteceu. Quase como um tratado sobre o quanto o passado é apenas uma construção da época que venceu uma outra verdade.

O Milagre | Sobre histórias

Retirar o espectador da diegese (espaço fílmico) no começo do filme mostra o quanto essa história não é averdade, mas “uma verdade”, uma que as pessoas se permitiram acreditar e levar para a frente. Acreditar nessa história depois de ver aquele set de filmagem é um esforço de imersão que fica ainda mais completo quando se percebe que a narradora inicial está lá no meio do filme, Kitty (Niamh Algar), quase como uma guardiã da trama, seja cavando o terreno em busca de algo que ninguém sabe o que é, seja lendo as notícias, seja orbitando esse suposto milagre.

A ideia é robusta e desafiadora, Kitty é uma espécie de narradora onisciente e onipresente, mas que se permite estar vivendo parte dessa história dentro dela. Como se entendesse o valor de uma história ter vários lados, ainda só um deles seja o preferido e carregado para a eternidade, seja nos livros, seja nas lendas, seja naqueles contos que sobrevivem nos pequenos vilarejos como verdades.

O Milagre é essa disputa pela verdade, principalmente quando a personagem de Pugh descobre que tem a chance de escrever ela a história. Não à toa, ela recebe a ajuda do jornalista Will Byrne (Tom Burke), alguém acostumado com a ideia de não ser apenas um espectador, mas sim um responsável por fazer de seu ponto de vista a história que irá sobreviver para aqueles que não a viveram.

Até a verdade que desponta de todo milagre é tão carregada dessa necessidade de construir uma verdade que faz com que a culpa e o arrependimento se tornem mais importantes do que a razão. Essa realidade descoberta pela protagonista não tem a ver com nenhum milagre, mas sim com o desespero de encobertar uma história que poderia destruir o legado, a lembrança e aquilo que ficou para a posteridade. Nem que isso valha a vida e sanidade de uma criança.

O Milagre não foge de ser pesado, mesmo diante de um final que se deixa ser cheio de esperança. Pugh é talvez uma escolha tão certeira para o filme que sua presença empresta, tanto uma delicadeza, quanto uma dor que compõe essa personagem que precisa, ela própria, carregar sua história nas costas, arrastando esse peso enquanto tenta apagar seu passado com a possibilidade de escrever o próprio futuro.

Já a câmera de Lelio não faz mais do que o necessário para deixar que Pugh e uma recriação de época impressionante sejam valorizadas a cada cena. Assim como em seus filmes anteriores, o diretor se comporta como um contador de histórias hábil e que sabe a importância de permanecer fora da história. Seu protagonismo está na capacidade de deixar com que sua história seja contada com toda potência que ela merece.

E quando ele deixa o cenário final e leva sua câmera mais uma vez para dentro desse set encarando mais uma vez sua narradora, demonstra o quanto sabe o que está fazendo. Não apenas uma intenção esteticamente esquisita, mas sim uma vontade de mostrar o quanto uma história para ser contada precisa de gente acreditando nela, não necessariamente de uma imersão diegética. Uma história precisa de gente contando e gente ouvindo. Seja qual verdade estejam acreditando.


“The Wonder” (Irl/UK/EUA, 2022); escrito por Sebastián Lelio e Alice Birch, a partir do livro de Emma Donoghue, dirigido por Sebastián Lelio, com Florence Pugh, Niamh Algar, Toby Jones, Ciarán Hinds, Kila Lord Cassidy, Elaine Cassidy e Tom Burke.


Trailer do Filme – O Milagre

Continue navegando no CinemAqui:

DEIXE UM COMENTÁRIO

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Menu