O Mistério de Candyman

O Mistério de Candyman | #017 | 666 Filmes de Terror

Uma lenda nasce escrita na parede. Quase como um recado, “Doce para o Doce” não tem a ver com qualquer tipo de bala, mas sim com tragédia e morte. Escrito em um banheiro sujo do conjunto habitacional de Cabrini-Green pode parecer outra coisa, mas antes disso estava nos lábios da Rainha e mãe de Hamlet enquanto velava o corpo de Ofélia. A referência já estava no conto de Clive Barker, assim como se manteve firme em O Mistério de Candyman.

O filme chegava aos cinemas em 1992 e já vinha com o selo de Barker, naquele momento um celebrado escritor de terror que, entre alguns roteiros assinados em Hollywood, já era autor que tinha dado vida ao sucesso Hellhaiser, tanto como diretor, quanto como roteirista. Mas Candyman estava definitivamente em outro lugar. Continuava ali, onde nascem os mitos, mas deixava os cenobitas de lado e encontrava um lugar muito mais perigoso, os dos seres-humanos.

Nem por um segundo sequer O Mistério de Candyman é um filme de terror com pretensões de ser só mais um slasher em um gênero que não parecia saber o momento de parar e surfava em uma autofagia que só não era sem precedentes no cinema, pois algumas décadas antes os clássicos Monstros da Universal tiveram muito mais continuações que o bom senso permitiria. O que parecia ser apenas mais uma tentativa de emplacar um novo vilão matador de jovens acabou se tornando um divisor de águas no terror.

Por mais que o cerne da ideia estivesse no conto “The Forbidden” do quinto Livros de Sangue de Clive Barker, é o Candyman de Bernard Rose que finca seu gancho no gênero. A história curta do escritor inglês tem um objetivo muito mais direto, uma ideia que dá as caras e se resolve dentro de um mesmo arco. Nele, uma estudiosa de arte urbana dá de cara com essa lenda e têm a oportunidade de se tornar ela mesmo eterna dentro da mitologia daquele lugar. Eterna como uma história de fantasma que para sempre será contada. Rose parece querer ir além disso.

Mesmo saído de alguns filmes de suspense com cara de “B”, Rose antes disso passou os anos 80 dirigindo clipes de rock de bandas como Franck Goes to Hollywood e UB40, mas Candyman também não está nesse lugar. O filme talvez seja o resultado de uma inquietação com o gênero e a oportunidade de fazer algo diferente. A solução ainda tem um peso social e político que slasher nenhum teve coragem de arranhar.

No filme, Virginia Madsen vive Helen (que não foi Sandra Bullock por pouco), uma pesquisadora de uma universidade em meio uma tese a respeito de mitos e lendas urbanas. Diferentemente do material original, Candyman aqui já é um monstro estabelecido, basta repetir seu nome em frente a um espelho cinco vezes que sua figura surgirá à suas costas e, com um gancho no lugar da mão esquerda, irá te matar de jeito violento. A história começa com Helen escutando testemunhas dessas histórias, a quantidade de detalhes das vítimas, mesmo sem elas terem sobrevivido, cria até um ar cômico, mas alguns detalhes podem levar à impressão de que algo de verdade pode ter acontecido.

Rose mistura o cerne do texto original de Barker com duas lendas urbanas relativamente famosas nos Estados Unidos (a história original se passa na Inglaterra). O assassino com a mão de gancho e a famosa Bloody Mary se misturam à criação de Barker e o resultado é certeiro, já que cria uma aproximação automática com o público, afinal todo mundo conhece a história das palavras contra o espelho, seja com a “Maria Sangrenta” ou nossa “Loira do Banheiro”. Mas Rose quase não está interessado nesse subterfúgio, ele está ali somente para construir esse filme.

É essa construção que talvez mais fuja do óbvio. São 44 minutos de realismo onde Helen investiga esses supostos casos reais e descobre, do pior jeito possível, que a lenda talvez não seja só uma lenda. Rose desacredita qualquer tipo de mitologia sobrenatural antes de colocar sua protagonista nesse espiral de loucura e violência.

O truque maior de Rose é ainda criar essa impressão de consciência de classe. A própria Helen se revolta com a ideia do grupo de prédios populares serem fechados depois que ela é ameaçada, “quando uma branca é agredida tudo é interditado, mas quando dois moradores negros são assassinados é como se nada tivesse acontecido”. O roteiro de Rose decide então mergulhar em um terror ainda mais assustador do que o de um assassino com um gancho no lugar da mão.

A ideia de Rose vai ainda mais longe ao criar essa gênese do próprio Candyman através de uma pesada e violenta história envolvendo negros escravizados, uma paixão, a tal mão decapitada e um assassinato por meio de um enxame de abelhas. Cada detalhe da criação dessa lenda acaba casando bem com o conceito criado para o monstro, mesmo sem estarem em companhia da criação de Barker. Rose enxerga nessa negritude do personagem a possibilidade de criar alguém ainda mais poderoso e, porque não, remeter ainda à todo discussão do gênero, tanto no racismo nada velado dos personagens negros morrendo nos slasher, quanto na polêmica do protagonista negro de A Noite dos Mortos Vivos. Curiosamente, o mesmo Tony Todd que dá vida ao Candyman, quatro anos antes viveu o próprio personagem que precisa lidar com os zumbis na refilmagem de Tom Savini do clássico de George A. Romero.

As intenções visuais de Rose ficam claras logo de cara, na abertura sobrevoando a cidade de Chicago e diminuindo a cidade a um emaranhado de concreto sem vida e sem personalidade. A imagem ainda era uma novidade para a época, um equipamento que permitia que houvesse esse tipo de filmagem aérea de um jeito tão estável. Essa câmera segura segue o filme até o final, Rose não desvia o olhar e vai permitindo que sua protagonista aos poucos vai caindo de cabeça em um mundo completamente desesperador, mas com a consistência da realidade. E não entender se o que você está assistindo é real ou ficção, é um terror maior ainda.

Helen questiona sua própria razão diante dos acontecimentos, o texto e a câmera de Rose nunca perdem isso de vista. Enquanto ela parece estar cometendo os crimes, nem o espectador tem certeza se aquilo é produto de sua imaginação ou se o próprio Candyman está realmente agindo por trás da realidade. Esse questionamento do real está no cerne do filme de 1992, ao mesmo tempo que mantém um distanciamento ainda maior do material original. Mais um sinal de quando Rose precisa ser responsabilizado pelo sucesso do material e do quanto a transformação do filme em uma espécie de cult do gênero tem a ver com a qualidade de seu trabalho e não só com a ideia de Barker.

Talvez um dos outros pilares de sustentação do sucesso de O Mistério de Candyman seja também o próprio Candyman. Tony Todd é uma escolha tão precisa que parece fácil entender como aquela figura enorme e com um gancho no lugar da mão, se tornou um “monstro” do tamanho de gente como Jason ou Freddy. O visual é impecável, justamente, porque saia do comum, dos trapos e roupas sem personalidade. O Candyman de Todd surgia com esse casaco cumprido e que deixava para fora uma pelagem digna das vestimentas mais finas de um século atrás. O texto em sua boca seguia o mesmo rebuscado meio pausado e esquisito, como se as palavras escapassem por seus lábios ao invés de serem ditas.

É logico que isso tudo também só funciona graças ao esforço de Rose na hora de construir esse clima. Seu filme não cede ao sobrenatural enquanto vai deixando esse real violento e carregado de uma verdade que ninguém quer ver. Os doces recheados de lâminas são um detalhe, tanto no conto, quanto no filme, mas aflição é poderosa. Por outro lado, o esforço de criar uma bagagem realista para o personagem pode até parece  frágil e não muito inspirada, ainda mais diante do restos dos acertos, mas ela funciona, constrói o personagem através do drama de uma história tristemente romântica, mas mais do que isso, faz com que os pontos principais do personagem ganhem uma força ainda maior. O gancho na mão é violento, mas presença das abelhas é desconfortável e aflitiva só de pensar.

A sutileza ainda vai mais longe, com os barulhos de passos de Candyman não existindo, mergulhando então no objetivo principal do filme, o de criar esse status de mito. Um lugar de superstição, rumor e religião.

O próprio Candyman aponta ser o “rumor, a escrita na parede. Não uma pessoa, mas sim uma história que nasce para manter a sociedade nos trilhos sociais. A ideia de que o ser humano é que cria seus Deuses, é o acreditar no Candyman que o mantêm existindo, é a dúvida nele que o faz despertar para não ser esquecido. É ele quem quer que Helen se torne eterna como uma mensagem, muito mais poderosa do que qualquer carne ou sangue. Para Candyman, o sangue só existe para ser derramado e isso o mantêm dentro dessa comunidade como uma espécie de Bicho Papão, mas celebrado através de um de altar, um sacrifício e até uma espécie de igreja criada através dos restos de suas humanidades, empilhados e apontando para o céu com suas chamas.

O peso de o Mistério de Candyman não está em um monte de mortes ou sustos, mas sim na criação de um mito, de uma ideia que extrapola a simplicidade com que o gênero se repetia sem emoção. Essa lenda nasce escrita na parede, ela é o sussurro na sala de aula, sem elas, Candyman não seria nada, mas com elas, acaba se tornando um jovem clássico do terror, sem nem precisar repetir o nome dele nenhuma vez na frente de espelho nenhum.


Candyman” (EUA, 1992); escrito e dirigido por Bernard Rose, a partir do conto de Clive Barker; com Virginia Madsen, Tony Todd, Xander Berkeley, Kasi Lemmons e Vanessa Williams


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Trailer do Filme – O Mistério de Candyman

https://www.youtube.com/watch?v=AFjb447gMIM

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