Algumas pequenas obras de arte vestem tão bem sua roupagem temática que conseguem pegar, por exemplo, um velho livro infantil, já amado e idolatrado por todos, até com filmografia já pronta, e ainda assim atualizar, expandir e enriquecer sua história, seu mundo e seus complicados conceitos. Mais uma vez. Uma atitude das mais nobres, diga-se de passagem, já que consegue nos remeter ao problema atual do amadurecimento precoce de nossas crianças, além de se encaixar na tendência mundial contra a padronização de comportamento.
É assim que vejo o novo trabalho de Mark Osborne, um cineasta que vem mantendo um currículo invejável por sua flexibilidade. Osborne esteve envolvido em curtas bem-sucedidos de animação (como as sequências de Bob Esponja“) e live-action (More, pelo qual foi indicado ao Oscar), além de uma comédia em longa-metragem (Dropping Out) e um longa blockbuster em animação (Kung-Fu Panda). Além disso, trabalhou em diferentes funções em outros filmes, como atuação e direção de arte. Portanto, para um roteiro que mistura diferentes “mundos” em animação e que contém uma suspensão de descrença tão ambiciosa que colocaria tudo a perder para um profissional menos eclético, ainda que competente, Osborne é a escolha certeira.
Esse novo O Pequeno Príncipe conta uma nova história, de uma pequena garota (a estreante Clara Poincaré) que se esforça ao máximo debaixo das asas de sua ocupada mãe (Florence Foresti) para conseguir uma vaga em uma disputada escola. Colocando em prática o plano das duas, elas se mudam para uma nova casa em um bairro onde todas as casas se parecem, exceto a de seu vizinho, um aviador já idoso (André Dussollier) que acumula uma vivência avessa a todo esse mundo certinho e uniforme que nos é apresentado. Além de uma casa completamente original, ele tem uma história peculiar a respeito de um garoto que conheceu em uma de suas aventuras, o Pequeno Príncipe do título e do livro homônimo de Antoine de Saint-Exupéry. O escritor, vale a pena lembrar, também foi piloto na vida real, e apesar de sua morte prematura na Segunda Guerra aqui ele parece ter ganhado uma “segunda chance” para espalhar sua história. Ao conhecer a pequena menina e apresentá-la seu herói, ela parece cada vez mais cativada por este ser imaginário, querendo saber cada vez mais sobre seu destino, a ponto de ficar dividida entre seu cronograma rígido de estudos calculado pela mãe e sua nova e inspiradora amizade.
Ao abraçar o mundo lúdico e poético da realidade do menino que vive em um satélite e viaja para outros lugares – inclusive a Terra – O Pequeno Príncipe abre uma discussão mais que atual, mesmo que sessenta anos após o livro ter sido lançado: a necessidade vital de todo adulto lembrar que um dia foi criança. Ao olhar para esse drama pelos olhos de uma garota que já vive a rotina de um adulto em plena infância, o roteiro de Irena Brignull (do ótimo Os Boxtrolls) entende que o problema enfrentado hoje pelas crianças é ainda pior do que o inevitável crescimento para a vida adulta: é o seu antecipamento. As crianças de hoje em dia são esmagadas por uma lista interminável de tarefas que as preparam para o competitivo mundo adulto. O velhinho aviador, por outro lado, tem a oportunidade de mostrar o destino fatal de todos que ignoram que ser criança é conseguir enxergar o mundo sempre com uma mente curiosa e imprevisível, e não através de padrões mapeáveis em um plano de vida.
Para contar uma história clássica dentro de uma história atual, O Pequeno Príncipe se beneficia de uma equipe de stop-motion absolutamente brilhante. Utilizando os desenhos originais do livro de Saint-Exupéry para dar vida a seus personagens, os traços em movimento lembram papelão fino ou papel dobrado – o mesmo usado pelo velhinho para fazer seu avião com a primeira página entregue à menina – e apresenta nuances adicionais pelo mundo tridimensional em que vivem, além do jogo de luzes reproduzir sentimentos a cada momento em um jogo de cores que simula a inexorável passagem do tempo e suas consequências (como a “vida adulta”, ou a dureza de espírito que isso acarreta).
No entanto, essa participação inspirada do stop-motion parece se tornar quase obrigatória quando olhamos para a Direção de Arte da história original, criada por uma computação gráfica igualmente perfeccionista. Os elementos visuais daquele mundo em que todas as casas, ruas, automóveis e pessoas são idênticas, também utiliza linhas uniformemente quadradas e retangulares, seja em uma maçaneta de porta ou o farol de um carro (e tudo isso para criar o contraste final com a casa do velho aviador, onde praticamente nada possui uniformidade, nem de cores). Quando há algo mais arredondado naquele mundo frio e calculista, é algo abolutamente necessário, como um guardador de mangueira ou os globos de neve com prédios que ela ganha de aniversário religiosamente todo ano de seu pai, demonstrando de forma visual e temática a “frieza” do distante contato entre eles, além de sutilmente parecer se apropriar de um dos artefatos usados em um clássico que também fala de relações humanas abaladas pelo mundo dos adultos sérios: Cidadão Kane.
Aliás, os símbolos e as referências mais criativas são as que parecem complementar a ideia da obra original ao atual movimento pós-crise de endemonizar as grandes corporações – das quais a IBM vira o símbolo da vez, tanto pelas iniciais de “Business Man” quanto pelo seu lema mundial (“todos são essenciais”) – embora igualmente de maneira quase que lúdica, como ao de referenciar a obra máxima de Orson Welles e de ao mesmo tempo referenciar Tempos Modernos, Metrópolis e The Wall, conseguindo no processo sugar quase todas as cores em um terceiro ato tão impactante tematicamente quanto belo visualmente. E não há nada de errado em se apropriar tão singelamente de obras máximas do Cinema quando se fala da arte de contar histórias. Como eu havia dito, a ambição de tal projeto praticamente exige essas pequenas-homenagens.
No entanto, se engana quem pensa que a roteirista Irena Brignull deturpou as ideias originais, pois há espaço para tantas referências e homenagens ao livro de Saint-Exupéry quanto há de atualizações. Para provar isto, basta citar um dos personagens mais flexíveis da narrativa, que apesar de acessório, protagoniza duas das melhores gags, envolvendo ironicamente sua fraqueza em pisar em um pé e sua força em levantar uma bola de boliche: a pequena raposa. Além do mais, os símbolos recorrentes do livro, como o avião, a rosa, as estrelas e os pássaros, ganham novos contornos e significados na nova história, realizando uma ponte extremamente elegante entre “realidade” e fantasia, como na magnífica transição entre o barulho de um adesivo e a visão do rastro no deserto.
E se roteiro, Direção de Arte e Fotografia trabalham juntos para dar o máximo de significado a cada nova cena, a trilha sonora composta em dupla por Hans Zimmer e Richard Harvey realiza o pequeno milagre de unir uma trilha padrão de aventura sensível em torno de um tema caótico o suficiente: um cantarolar que surge quase como por acaso e se transforma em um canto pela liberdade de ser único.
Dentro dessa cornucópia mágica de símbolos, referências e reflexões, poderia haver a percepção (falsa) que falta um conflito maior na história. Ora, se ao usar um mundo fantasioso construído com calma e com paixão através das visitas constantes da menina à casa do velho o mundo de fantasia ganha suas próprias paredes e seus próprios conflitos, ao menos na mente da menina, é óbvio que, além de existir um conflito interno na garota, é uma forma extremamente criativa de abordar um tema necessariamente adulto, desafiando até mesmo outro filme do ano, Divertida Mente, que contém ideias igualmente revolucionários, mas contidas em um clichê hollywoodiano que tenta não causar tanta estranheza às crianças. Já O Pequeno Príncipe possui a vantagem e a virtude de nunca precisar fugir da estranheza, mas abraçá-la. Quando lembramos dos desenhos de uma cobra engolindo um elefante ou de uma caixa que contém um carneiro, vemos que esta foi sempre a proposta desde o início: o poder de imaginação de uma criança pode abalar o mundo mais adulto. Mesmo que esse adulto ainda seja uma inocente criança.
“The Little Prince” (EUA, 2015) Escrito por Irena Bringnull e Bob Persichetti, à partir da obra de Atoine de Saint-Exupéry, dirigido por Mark Osborne
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O site Pausa Dramática já viu o filme. Saiba o que achamos: http://pausadramatica.com.br/2015/08/18/resenha-do-site-o-pequeno-principe/