Não há melhor palco para um filme de terror do que as consequências da administração estatal. No caso de O Rastro, os resultados do sistema público de saúde são o palco perfeito para uma tortura psicológica que não tem saída fácil.
Representada na figura de uma menina que lembra a personagem Samara do filme O Chamado, a dor que o herói deste filme sente é, em parte, a dor compartilhada por milhões de brasileiros quando olha o resultado de seu governo. Os corredores escuros e sujos de um hospital interditado, ou, na verdade, o lugar onde o cidadão se sente perdido enquanto observa os inúmeros o real descaso e corrupção de um sistema que já nasceu falido.
Tendo como pano de fundo o fechamento de um hospital diante do estado de calamidade pública nos hospitais do Rio de Janeiro, onde faltam funcionários e equipamentos para dar conta dos pacientes que se acumulam nos corredores à espera de tratamento, João (Rafael Cardoso), um médido em um cargo administrativo, é o responsável pela organização e evacuação dos pacientes. Durante o processo ele reavalia suas ações ao encontrar uma ex-colega de faculdade que também é médica e ficará junto dos outros funcionários sem função alguma, seu mentor (Jonas Bloch) que é o reitor do hospital e que tenta a todo custo evitar o fechamento, e, principalmente, a última pessoa erroneamente internada no hospital já condenado: uma menina, Julia (Natália Maciel Guedes), que dá origem a um processo de remorso interno e desespero quando João constata que ela foi provavelmente esquecida e abandonada no hospital para morrer.
Escrito pela dupla Beatriz Manela e André Pereira, a história envolve elementos já conhecidos do gênero: corredores vazios e sujos, sons perturbadores e reviravoltas inquietantes da metade para o final. Aliado a isso, ainda temos elementos que não parecem estar envolvidos de maneira muito orgânica no enredo, mas que irão ter sua função em momentos oportunos, como o político por trás das ações administrativas, a colega misteriosa (Cláudia Abreu) e a esposa de João (Leandra Leal), que está grávida. Claro que grávidas têm seu lugar garantido em filmes de terror, mas simplesmente “jogar” uma grávida no decorrer da história parece apenas tentar afligir o espectador sem muita justificativa.
Dirigido por J.C. Feyer como um terror estilo americano, ou seja, com direito a sons que assustam, cortes bruscos e ângulos diferentões para buscar o sentimento de incômodo do espectador, porém, O Rastro possui uma “cara internacional”, mas com um tema tipicamente local.
É costume do brasileiro olhar para seu sistema de saúde com desdém (embora isso não tenha sido feito em alguns mandatos, tendo inclusive recebido elogios nacionais e internacionais), e frequentemente existem histórias assombrosas sobre pacientes em condições lamentáveis de atendimento. Por isso, a ideia de transformar o que já era terror em uma história convincente é mais que bem-vinda, e até um caminho natural para explorar um gênero universal usando detalhes bem peculiares da realidade do país do diretor.
Usando camadas de plástico e quadros fechados para explorar melhor o mistério e a loucura que João está passando, a iluminação fraca ajuda a criar um clima de terror, mas não consegue ser usada com um significado latente. Por que João é visto em determinado momento, no meio do filme, com a cara dividida em luz e trevas, se ele já aparece em trevas desde o início de um filme (que utiliza a falta de iluminação, física e metaforicamente)?. Ele faz parte de uma administração falida e é visto no escuro na central de controle do estado, último recurso infrutífero do governo para tentar conter o caos e a barbárie.
De qualquer forma, os aspectos técnicos são os que mais brilham. É a vida real que estabelece o clima de terror e desolação visto em O Rastro. É ela que serve de guia para que uma direção de arte empenhada em mostrar a bagunça, o descaso e o desleixo na administração pública. Além dela, a fotografia, cheia de tons frios e uma iluminação tão boa quanto a dos piores hospitais do Rio – ou seja, insalubre e cheia de falhas intermitentes – conseguem passar parte da realidade que os cariocas estão vivendo.
Já a edição de som, tão importante para o gênero, aqui é usada e abusada de várias formas. Às vezes é até em uma furadeira elétrica em um momento não muito brilhante do roteiro, em outras há uma sensação de equilíbrio entre o real e o sobrenatural, como as vozes de crianças chorando que João não consegue parar de ouvir.
Mas voltando à narrativa, ela é eficiente na medida em que consegue manter o mistério o máximo possível, mas vê tudo desabando aos poucos, sem conseguir retomar a aparente grandiosidade da mesma. Personagens demais parecem acumular-se para que as reviravoltas se tornem mais efetivas. A ex-colega de João, por exemplo, está aí para dar seu nome – para que ele a encontre em suas pesquisas de exames pedidos – e um olhar curioso sempre que esbarra com ele. Além disso, o roteiro coloca situações que soam às vezes convenientes demais, como uma pessoa que sabe que alguém está chegando em sua sala e pede para outra se esconder, ou às vezes sem explicação, como o motivo pelo qual João volta a vestir o jaleco (participar de uma sequência aterrorizante no quinto andar?).
Preocupado demais em gerar terror a toda hora, há poucas explicações sobre os personagens (ex: vc sabia que a mulher de João é artista plástica e trabalha com crianças? nem eu, até ouvir o próprio diretor do filme dizer isso na coletiva) e um pouco de exagero no uso de estilo acima do justificado (corte diagonal pela claustrofobia, divisão de tela chamando atenção para si em uma conversa entre João e seu mentor …aliás, por que esse jantar, mesmo?) dificultam um pouco a interação com eles, e a identificação. Como todo terror B, seu protagonista aos poucos se revela descartável, pois não existe espaço para o drama exceto a situação do sistema de saúde como um todo.
Por fim, cria-se um personagem apenas para mais uma virada próximo do final do filme. Os roteiristas parecem estar empolgadíssimos com o gênero, criando uma série de viradas que, assim como os sustos baratos, acrescentam pouco ao clima já aterrador do filme. Tentando não revelar muito do terceiro ato, apenas peço que me responda com sinceridade: você não acha que boa parte do terror que vemos no dia-a-dia, com descaso em setores como saúde e educação, já não está associado com corrupção? O que um novo possível esquema, por pior que seja, pode piorar a situação geral da população e atacar ainda mais sua dignidade?
Sem conseguir mover nada além do impacto inicial que é cozido em banho-maria, conforme as revelações avançam, já estamos anestesiados há muito tempo. E nunca de fato nos preocupamos com João, mas assistimos, aterrorizados, até onde vai a podridão humana, e como ela reflete no psicológico e, no caso de O Rastro, na realidade de uma nação.
“O Rastro” (Brazil, 2017), escrito por Beatriz Manela, André Pereira, dirigido por J.C. Feyer, com Leandra Leal, Rafael Cardoso, Cláudia Abreu, Alice Wegmann, Jonas Bloch