Os Fabelmans (2022) | Crítica do Filme

Os Fabelmans | Mais que amor ao cinema

Tentando acalmar o filho na fila do cinema, prestes a levar o menino para sua primeira sessão na vida, o pai (Paul Dano) explica que não precisa ter medo, afinal é só uma ilusão, nada daquilo está acontecendo. Na mesma frase ele explica tecnicamente como funciona o cinema, dos quadros por segundo até a persistência da imagem no olho que dá a impressão de movimento. O menino, Sammy, parece não entender nada naquele momento, mas ao sentar na sala escura se perde naquele instante, no trem sendo assaltado enquanto um dos ladrões, diante da própria consciência, tenta impedir que outro trem se choque no primeiro. Os vagões voam pelo ar e mudam completamente a vida daquele garoto.

Os Fabelmans, novo filme de Steven Spielberg é sobre esse sentimento. O amor à primeira vista com o cinema e o quanto isso muda vidas. Mudou a dele, a minha e a de mais um monte de gente que deve estar lendo essas linhas.

Mas para o próprio Spielberg entender isso, precisava antes de tudo entender onde isso se encaixava em sua carreira. Há quem diga até que todo cinema do diretor resvale nisso, nos filhos e pais em sintonias diferentes. Talvez até seja possível imaginar que esse filme está sendo feito no momento correto de sua carreira, com um amadurecimento que o coloca no lugar exato para contar essa história.

O roteiro é escrito por Spielberg e Tony Kushner, criador do original Angels in America (a peça) e que já trabalhou com Spielberg em Munique, Lincoln e Amor, Sublime Amor. Mas Fabelmans é mesmo sobre Spielberg. Uma cinebiografia que, ao que tudo indica, tem muito mais coisa real do que se possa imaginar.

Da sessão de cinema de O Maior Espetáculo da Terra e seu trem, até John Ford, tudo parece ser aquilo que colocou Spielberg na rota do cinema. Os Fabelmans acompanha então um jovem descobrindo o cinema, mas também ganhando consciência de algo ainda mais poderoso: a humanidade de seus pais.

É lógico que o filme é um “coming of age” com esse adolescente aprendendo a ser adulto e experimentando uma série de “primeiras vezes”, mas, como o título diz, é também sobre esse garoto que começa a olhar para os pais como criaturas complexas, delicadas e humanas. Paul Dano é Burt Fabelman e Michelle Williams é Mitzi Fabelman, Gabriel LaBelle é Sammy, o resultado dos dois.

Burt é analítico, trabalha com tecnologia e isso o coloca no caminho dos computadores, das invenções e da praticidade. Mitzi é uma alma artística presa ao seu marido, sua capacidade no piano a coloca como genial, mas nunca o suficiente para uma carreira que seja alguma senão a de mãe. Sammy precisa crescer enquanto entende isso e o quanto as opções de ambos não necessariamente precisam ser as suas. O garoto precisa então lutar por sua arte e por seu destino.

Os Fabelmans | Mais que amor ao cinema

Kushner e Spielberg constroem isso com delicadeza e precisão. Nunca um filme que se permite ser só uma coisa. É um drama sobre o relacionamento dos dois, mas também uma história sobre um artista desabrochando e tendo que lidar com essa visão de mundo que o coloca em um lugar completamente diferente. Como seu Tio Boris (Judd Hirsch) lhe aponta, vai ser preciso entender esse amor e perceber que ele é maior do que tudo.

Talvez em um outro momento de sua carreira, Spielberg não conseguisse ter a maturidade para entender todas as nuances de seu próprio filme. Talvez mais cedo em sua lista de filmes, Os Fabelmans aceitasse ser mais maniqueísta, julgando seus pais e todas suas decisões. Mas aqui a complexidade emocional do filme é tão respeitada que o filme, não só é o mais pessoal de Spielberg, como também é um dos mais profundos na hora de tentar entender seus personagens e suas motivações.

Spielberg não está exorcizando sua vida, mas sim entendendo ela. Sua busca durante todo filme é do olhar apaixonado desses personagens. Seja entre eles, diante da beleza de uma canção, uma dança, um filme amador ou até de uma despedida. O resultado é uma leveza que movimenta o filme e se torna uma daquelas experiências que foca em conquistar um público que está pronto para se apaixonar por um dos filmes mais emocionais do ano.

O resultado direto dessa sensibilidade e essa vontade sincera de contar uma história é, como sempre na carreira do diretor, uma facilidade incrível de criar espaço para seu elenco brilhar, ao mesmo tempo que parece não perder nem um centímetro de seus trabalhos. Michelle Williams surge mais uma vez como uma força da natureza, entendendo perfeitamente bem a melancolia e a solidão de sua personagem, um perfil que briga o tempo inteiro com uma força sobrenatural. Mas tudo convivendo com uma sutileza que não deixa nunca a personagem ser julgada por seus atos, desejos e falhas.

Dano talvez não impressione tanto, mas levando em conta seu recém trabalho transtornado e doentio como o Charada de Batman, seu Burt Fabelman assusta de tão diferente e quase imperceptível. Como se o personagem pedisse o tempo inteiro para ser esquecido e ignorado. Quase como se estivesse preso a um lugar de bondade e inocência que precisam de um caminhão de incômodo para tirar seu personagem de um fio condutor que demonstra o quanto sua impotência e visão de mundo encurtada poderia ter impedido seu filho de ser quem ele realmente será.

Spileberg não perde um momento sequer disso tudo, da possibilidade de apreciar ambas construções de personagem ao mesmo tempo que vai deixando que seu Sammy vá vivendo esses momentos tão diferentes de sua vida e o quanto o cinema vai definindo cada um desses lugares onde ele precisa chamar de lar. Com isso em mãos, é impossível não se divertir sabendo que aqueles filmes amadores de Sammy são recriações dos reais feitos por Spielberg na mesma época. Um toque romântico e divertido para os fãs e mais uma prova da grandiosidade e genialidade do cineasta.

E enquanto Spielberg parece mais uma vez fazer o difícil ser fácil, Os Fabelmans é como um tratado que encara de frente o próprio cineasta em todas suas referências e peças que o construíram. No final de tudo, em um encontro de gerações delicioso e que marca a história do cinema para sempre, Sammy encontra com um John Ford interpretado por um David Lynch e leva com ele um ensinamento que irá transformar sua carreira para sempre, a prova disso é um último plano que talvez seja um dos mais inteligentes, simbólicos e poderosos da carreira de Spielberg… ou de Sammy. Não importa de quem, o que importa é o horizonte estar no lugar correto. E talvez ele nunca estivesse em um lugar tão certo quanto agora.


“The Fabelmans” (EUA, 2022); escrito por Steven Spielberg e Tony Kushner; dirigido por Steven Spielberg; com Michelle Williams, Gabriel LaBelle, Paul Dano, Judd Hirsch, Seth Rogen, Mateo Zoryan, Keeley Karsten, Alina Brace, Julia Butters, Birdie Borria, Jeannie Beriln, Robin Balett e Chloe East.


Trailer do Filme – Os Fabelmans

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