Ainda que Passageiro Acidental se escore em dois momentos que não se importam com qualquer tipo de realidade ou credibilidade, o filme dirigido pelo brasileiro Joe Penna, ainda assim acerta na maioria do tempo e demonstra um esforço interessante de mergulhar em uma ficção científica com o mínimo de inspiração.
Mas por ser uma espécie de aposta da Netflix de “filme grande da semana”, talvez esses defeitos acabem não pesando muito diante do gosto do público geral. De qualquer jeito, entender como aquele cara foi parar dentro da nave e o terceiro ato não ajudam Passageiro Acidental a se tornar um daqueles filmes que serão lembrados por mais tempo que o algoritmo do streaming permitir.
Por outro lado, a qualidade estética do diretor é algo que irá se sobressair diante dos esbarrões com o bom senso que o roteiro escrito por ele (em parceria com Ryan Morrison) dá. Preso na cabine de comando com os três astronautas partindo em uma missão de dois anos, a câmera de Penna é direta, inverte o horizonte para arrancar o espectador de uma suposta gravidade e acompanha de perto o trio de (quase) protagonistas. A capitão vivida por Toni Collette, o biólogo interpretado por Daniel Dae Kim e a médica Anna Kendrick.
O roteiro de Penna e Morrisson estabelece bem a função de cada um ali, assim como usa eles para mostrar o esforço da produção em criar um ambiente conivente com a realidade. Enquanto acompanha os personagens em planos longos, o espectador entende absolutamente toda geografia da nave, ao mesmo tempo que, do lado de fora, constrói esse visual que beira o excêntrico, mas que exerce uma função interessante dentro do destino do filme.
Tudo vai bem, o espectador satisfeito com o visual, os personagens cumprindo o que prometem, Anna Kendrick sempre esforçada em ser a pessoa mais simpático do lugar, mas então entra em cena o personagem de Shamier Anderson, um engenheiro que trabalhava no dispositivo que cuida do oxigênio da nave, acabou se machucando, desmaiando e ficando preso a um compartimento do teto da nave. Tudo bem, essa é a parte que é difícil de se manter dentro do aconchego da suspensão de descrença para aceitar que ele chegou ali naquele lugar naquele jeito, mas vamos ao que interessa.
A presença do quarto passageiro acaba ainda destruindo a tal traquitana, derrubando pela metade a quantidade de oxigênio que a nave tem, consequentemente, ou alguém terá que ficar pelo caminho, ou todos ficarão. O que também não é algo tão fácil de engolir, mas o melhor mesmo é se manter firme dentro do filme para aproveitar o resto da jornada.
O que importa é que Passageiro Acidental sobrevive a tudo isso e se mostra uma espécie de suspense tenso, não pela tensão de um vilão ou outro, acertadamente eles não existem, mas sim pelo caminho inevitável. Ao mesmo tempo, vai apostando nessa possibilidade de deixar um fio de esperança interessante que move os personagens através dessa história.
É lógico que o final ruma para o óbvio, colocando eles em uma caminhada espacial que aproveita para explicar o formato pendular da nave e aproveitar para dar uma lição de física para a galera que se interessar pela razão de haver gravidade nos dois pontos que servem de desculpa narrativa para a sequência tensa no final. Por mais que a ela não se importe também muito com a realidade e se deixe levar pela fantasia e pelo provável pânico dos cientistas que estiverem vendo essa conclusão e as explosões solares de Passageiro Acidental.
Mas o visual realmente compensa, assim como também esconde um pouco o formato formulaico e até meio covarde, já que não parecer perceber o desequilíbrio com que trata seus personagens. Enquanto os astronautas parecem ter seus passados arranhados, o tal passageiro acidental tem uma história cheia de dores, perdas, cicatrizes e vontades. Por mais que o filme não tente vilanizar nenhum dos personagens, fica fácil não sentir que eles devem pensar em sacrificar a única pessoa na nave que merece ficar viva.
Essa impressão de destruição dos próprios personagens fica ainda mais evidente quando dois deles só decidem buscar uma solução mesmo diante do perigo, quando descobrem que o oxigênio também não será suficiente para eles. Do mesmo jeito que você imagina o que vai acontecer quando a protagonista (Kendrick) vai até a juventude dela para usar uma metáfora sobre aquilo que irá acontecer no terceiro ato, o que fará todos espectadores serem atingidos por uma frustração enorme, já que o filme parecia prometer mais do que só mais um final esquemático.
Tudo isso pode, e deve, fazer com que Passageiro Acidental, tenha um futuro menos interessante do que ele poderia ter, mas, de qualquer jeito, acaba sendo um filme que vale, tanto pela vontade de ser algo minimamente criativo, quanto pelas soluções técnicas interessantes (o formato da nave é realmente legal!) e pela vontade do diretor brasileiro de entregar um visual bacana e novo, mesmo dentro de um gênero com tanta coisa igual e já meio cansativa.
“Stowaway” (EUA, 2021); escrito por Joe Penna e Ryan Morrison; dirigido por Joe Penna; com Anna Kendrick, Daniel Dae Kim, Shamier Anderson e Toni Collette