Passagens | O vazio do desejo

Decididamente não é fácil lidar com um protagonista que está mais para vilão do que herói. Pior ainda quando acontece como em Passagens, novo filme Ira Sachs, onde você ficará o tempo todo sendo convidado a entender aquela péssima pessoa… mas que você esquece o quanto é ruim.

Uma verdadeira montanha-russa onde o diretor não esconde o pior lado de seu protagonista, mas o espectador teimoso parece esquecer disso o tempo todo. Franz Rogowski vive um diretor de cinema que o espectador descobre ser uma pessoa sem o mínimo tato antes mesmo de aparecer na tela, enquanto dirige a cena de um filme e parece deixar pouco ou nenhum espaço para qualquer tipo de empatia com seu ator. Mas Sachs está tão perto de Tomas (Rogowski) que é fácil se enganar.

Sachs escreve o roteiro com o brasileiro Maurício Zacharias, que já tinha escrito os últimos 4 filmes do diretor, mas também é conhecido no Brasil por assinar os textos de Madame Satã e O Céu de Suely. A ideia dos dois é contar a história desse diretor enquanto se apaixona por Agathe (Adèle Exarchopoulos) e larga seu casamento com Martin (Ben Wishaw), mas tudo vai além disso.

Passagens se aproxima de Tomas como se tentasse entender suas motivações, mas esconde por trás disso apenas aquela sensação de que não há razão moral para aquelas decisões. Tomas não é movido por suas paixões, mas sim por seu ego e o espectador e convidado a sentar nesse lugar confortável sem perceber o quanto aquilo não está correto. Mas Tomas é arrebatador e é difícil ir contra ele. Por mais que vá construindo sempre essa sensação de desastre emocional anunciado.

O lado mais sensível de Sachs e Zacharias é justamente esse conforto com que olham para seu protagonista, sem julgamentos, mas com a delicadeza de se manter firme enquanto toda essa paixão tórrida o move através das vidas de seus (aparentes) dois grandes amores. Um roteiro que também não pega o atalho de refletir Agathe e Martin como dois lados de uma mesma moeda e nem repetem neles as mesmas situações. O objetivo é sempre observá-los e deixá-los diante das ações (meio) desenfreadas de Tomas.

“Meio”, pois Sachs não sacrifica seu protagonista, apenas não esconde seus erros por trás de nenhum tipo de inversão de valores ou compensações. Suas ações estão lá, prontas para serem julgadas, mas não pelo filme e sim pelos espectadores, que acabam embarcando em um caminho até meio melancólico e triste.

Existe uma dor quase crônica em Passagens ao acompanhar Tomas cometendo erros e não conseguindo lidar com eles até momentos de completa tristeza e sofrimento. Quando o espectador perceber o quanto Tomas quebrou Martin e Agathe já vai ser tarde demais para o espectador prever qualquer tipo de compensação. O personagem se vai e a câmera de Sachs faz o que deve ser feito, o acompanha sem rumo e sozinho.

Mas Passagens é, sobre tudo isso, um filme que acompanha desejos sem avaliá-los ou analisá-los, apenas permite que seus personagens sejam aquilo que eles querem ser. Seus impulsos o movem antes de suas convicções. É fácil prever as dores, mas é mais fácil ainda entender o quanto aquilo é satisfatório para aquelas pessoas, o quanto elas estão felizes e o quanto o espectador torce por aquelas pessoas. Do lado de cá querendo que elas sejam felizes.

Porém não há felicidade que sobreviva à presença de Tomas. Parece exagero, mas o filme não só quer colocar o espectador nessa descoberta, como ainda não permite que ele enxergue isso. A velocidade e a falta de rumo sobre sua bicicleta vão fazer ele esquecer daquilo tudo enquanto procura um novo lugar para encaixar seu ego e destruir emocionalmente mais gente ao seu redor.

Azar do espectador que precisará lidar com esse sentimento de vazio enquanto percebe que esteve tão perto de alguém pronto para ser um protagonista daqueles que não são heróis. Com curvas morais que fazem seus espectadores analisarem o quanto tomariam atitudes tão diferentes… ou não. Uma dúvida que faz de Passagens um filme poderoso, mas, ao mesmo tempo, delicado e emocionalmente instigante.

“Passages” (Fra/Ale, 2023); escrito por Ira Sachs e Maurício Zacharias; dirigido por Ira Sachs; com Franz Rogowski, Ben Whishaw, Adèle Exarchopoulos e Erwan Kepoa Falé.

SINOPSE – Um cineasta se apaixona por uma mulher durante o final da produção de seu filme, mas isso transforma completamente seu casamento e ele precisa lidar com a separação do marido.

Trailer do Filme – Passagens

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