Pobres Criaturas | Esquisito, excêntrico, engraçado e obrigatório

Talvez Pobres Criaturas seja o filme mais simples do cineasta grego Yorgos Lanthimos. Ao mesmo tempo, é o mais esquisito, excêntrico, engraçado e relevante. Mas tudo isso embalado em um pacote de milhões e milhões de dólares para fazer um filme enorme e absolutamente singular.

Perto dos primeiros filmes da carreira de Lanthimos, Pobres Criaturas é quase didático. O que faz dele uma exposição muito mais clara de uma ideia que permeia o filme inteiro enquanto finge ser essa refilmagem esquisitona da Noiva do Frankenstein com pitadas de sexo, violência, filosofia e descobrimento. Tudo com uma cara de fantasia meio steampunk e (por que não?) um “body horror”.

A parte do horror é bem mais sutil, com os cachorros com cabeça de ganso e um ou outro plano detalhe que tem a intenção de mergulhar o espectador nas entranhas de um ou outro personagem. A parte da fantasia vem dessa jornada de Bella (Emma Stone), uma jovem que, misteriosamente, tem um cérebro de criança dentro do corpo desenvolvido de uma mulher e decide conhecer o mundo.

Ao que tudo indica, Bella é o resultado de algum experimento do Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), ele próprio o resultado remendado de outro experimento. A referência à história de Mary Shelley é óbvia, assim como à continuação do clássico dos cinemas, A Noiva de Frankenstein, de 1931. Mas talvez Pobres Criaturas vá até mais na obra original, onde o “monstro” perambula pelo mundo para descobrir que, justamente, não é um monstro.

Bella precisa percorrer esse caminho e o filme de Lanthimos, com o roteiro do mesmo Tony McNamara de A Favorita, a partir do livro de Alasdair Gray, quer que isso seja, realmente, uma jornada de descobertas onde ela percebe o quanto o prazer e capacidade de pensar talvez não sejam algo tão bem-vindo para as mulheres, qualquer que seja a época que o filme se passe, já que conversa com um “vitoriano futurista’, mas poderia estar em qualquer momento.

A filha de “God” parte então em uma viagem com o escorregadio e mal-intencionado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), tudo regado a sexo e, no caso dela, uma transformação e amadurecimento humano e filosófico. O prazer a coloca em um lugar de poder, mas, ao mesmo tempo, a impede de lidar sinceramente com suas vontades, precisando atender a “sociedade polida” em vez de, simplesmente, ser ela mesma.

A intenção do diretor é, justamente, deixar essa mensagem clara. Diferentemente de grande parte de seus primeiros filmes, Pobres Criaturas não pode e não quer esconder nenhuma de suas intenções ou discussões, principalmente, pois precisa deixar claro o quanto aquela mulher não é um monstro, mas sim é apenas uma “ser humana” com vontades e que deve aceitar quem realmente é diante daquilo tudo que vai experimentando e vivendo. Pobres Criaturas é sobre crescer e descobrir que é possível ser quem você realmente se tornou e não quem os outros querem que você seja. Mesmo que para isso seja possível extrapolar os limites do prazer e de uma certa violência.

E Lantimos extrapola tudo isso. O sexo envolvido no filme sai do excitante e vai até um lugar que beira o incômodo, tamanha sua humanidade e falta de pompa. Mas tudo com um capricho visual que é comum nos trabalhos do diretor desde o começo da carreira e que só fica ainda mais claro com mais dinheiro envolvido em suas produções. Se o sexo pode chocar alguns mais moralistas, o visual rebuscado e que extrapola até a “retidão” do mundo com alguns momentos distorcidos por grandes angulares salientam a esquisitice da ideia central do filme.

Enquanto Bella vai descobrindo o mundo, surge dela um pragmatismo e um bom senso que é tão claro que cria esse tom onde nada parece ter a resolução esperada, mas sim a merecida. Uma distorção que extrapola a ideia de Bella e mergulha o mundo desse lugar onde nada se deixar ser só o que é. Tudo na tela tem algo a mais para ser visto e aproveitado. Do garfo com mais dentes, até os pisos rebuscados. Do “cavalo à vapor” até um castelo que mais parece uma alegoria para explicar o quanto as camadas da sociedade estão fadadas a ficarem estagnadas, afinal a escadaria entre elas está destruída.

Uma metáfora visual que enche a tela e soa até exagerada diante do resto da carreira muito mais sutil de Lanthimos, mas que aqui se encaixa, já que a intenção e mostrar e discutir o que está sendo falado e mostrado e não deixar aquilo para qualquer discussão metida a besta. Uma mensagem que o diretor quer que atinja a todos e não apenas uma parte de seus espectadores.

E esse mesmo cuidado com a imagem se mantém, tanto na criação do visual daquele mundo, quanto no trabalho do elenco. Dois lados que se completam em Pobres Criaturas e constroem um filme inesquecível e surpreendente.

O “remendado” Daffoe, não é só uma versão do monstro clássico, mas sim alguém com nuances tão complexas que o fazem ser uma criatura completamente poderosa e com uma presença que toma a tela. Junte a isso uma capacidade sobrenatural do ator de se manter firme mesmo diante dos diálogos mais malucos e ideias mais estapafúrdias. Quase como se estivesse o tempo inteiro escondendo um humor óbvio por trás de uma seriedade tão rebuscada que fica difícil se sentir à vontade para rir (ainda que com certeza o cinema o fará várias vezes).

Rufallo não segue a mesma construção de personagem, mas sim foca nessa evolução. Levando em conta não só o charme inicial do personagem, mas também sempre permitindo que vá surgindo essa fragilidade aos poucos, até se permitir ser, tanto o patético vilão, quanto somente o ser humano igualmente patético e idiotizado, afinal, não é capaz de lidar com uma mulher que não seja apenas o objeto de seu desejo.

Essa mulher, Bella, entretanto, é um espetáculo à parte. Emma Stone não só entende a personagem em termos físico e corporais, como sabe o quanto é importante que essa evolução não seja só uma mudança que está no roteiro, mas sim algo que faz sentido diante daquilo que está acontecendo no filme. Suas descobertas e prazeres não são só um subterfúgio para criar uma personagem caricata, mas sim a motivação para potencializar essas transformações. Assim como o “monstro” do Doutor Frankenstein, a Bella do final do filme não é a mesma do começo, mas não só pela trama e sim pelo trabalho poderoso da atriz.

E tudo isso ligado a uma exposição que vai além da nudez e chega nesse lugar de entendimento do papel da mulher naquela sociedade e em qualquer outra. Como se entendesse que o caricato precisa existir para servir de contraponto diante da força de entender o que deve ser e o quanto esse prazer, violência e enfrentamento, precisam ser algo reconhecível e transparente.

Pobres Criaturas talvez seja mesmo o filme mais simplificado do cineasta grego, mas nem de perto ele é o mais simples. Muito pelo contrário até, seu objetivo é expor uma ferida da sociedade e ele faz isso de modo poderoso e de um jeito que todo mundo sairá do cinema pensando sobre ele. Pelo menos é isso que Lanthimos deve estar torcendo para acontecer.


“Poor Things” (EUA/UK/EUA, 2023); escrito por Tony McNamara, a partir do livro de Alasdair Gray; dirigido por Yorgos Lanthimos; com Emma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe, Ramy Youssef, Suzy Bemba, Jerrod Carmichael e Margaret Qualley


Trailer do Filme – Pobres Criaturas

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