[dropcap]R[/dropcap]aiva é adaptação de Seara do Vento, um livro inteiro do escritor Manuel da Fonseca, mas que no filme mais parece um conto. Inspirado em uma ocorrência real (o livro), a história no filme começa com um homem que desistiu da vida que levava. Isso é óbvio quando o vemos carregar sua arma e pular a janela de sua casa. Ele vai fazer justiça? Não sabemos. A única coisa que fica clara é que ele tem um motivo. E naquele momento não importa qual.
Como descobriremos mais tarde, quando a dignidade humana é perdida os motivos não importam.
Essa é a única inversão narrativa da história, pois o filme é sobre o motivo de tamanha fúria. Então voltamos ao passado para entender a dinâmica dessa família que mal tem para comer.
Estamos em Portugal, em 1950 e em preto e branco, pois este é o tom que esta história fica melhor, com as mantas pretas das mulheres e a paisagem desértica ao fundo. Em alguns momentos não se sabe se o horizonte é real ou pintado, pois ele é estilizado; lembra constantemente O Sétimo Selo, clássico do Bergman na época da Peste Negra. Com a diferença que aqui a praga é substituída pelas mazelas e injustiças do mundo.
Outro traço do estilo de Raiva é seu comprometimento com o tema da pobreza. Isso se reflete nos cenários quase vazios ou inertes, na falta de diálogo quase digno de um Vidas Secas (Graciliano Ramos) e na falta de trilha sonora. Os únicos sons são os do ambiente e os hinos cantados pela igreja, no máximo dois, que ironicamente iniciam e encerram esta história. Este é também o mesmo estilo do livro em que se baseou. Exemplo de literatura neorealista portuguesa, Seara foi escrito por um comunista cujo principal motivo é ideológico, e não a história em si, que é apenas alegórica.
Se formos analisar o filme por sua história veremos que ela não importa, mesmo, pois é apenas um pedaço da vida privada que se repete aos quatro cantos da História: há os ricos que herdam a terra e há os pobres que ou obedecem ao seu dono ou perecem. A família do filme está na lista dos que perecem, pois seu pai de família cometeu o pecado de pedir aumento ao seu dono. Na história real é acusado de roubar sementes, mas os motivos realmente não importariam se nesse filme em específico estivesse em mente o uso do maniqueísmo narrativo, que apesar de subverter sua fonte de inspiração neorealista necessita endurecer a vida real a ponto dela se encaixar nos objetivos da trama.
O diretor e roteirista Sérgio Tréfaut transforma este romance de uma ficção para outra: a famigerada luta de classes do qual tanto se fala ultimamente. Tão fora de moda por muito tempo, mas de tão poderosa que hoje está em voga de novo; e a pobreza sempre faz sucesso na telona.
No entanto, como quase não há personagens a impressão é que não há material suficiente para fazer um longa metragem. Há inúmeras e longas pausas onde vemos a família fazendo exatamente… nada. Esperando a boa sorte. Lamentando o destino fatal que os deixou à mercê do fim. Não é possível acessar sua mentes pela situação de vida, mas apenas intuir. Estão fracos de fome e longe do divino. A criança deficiente nos lembra do aspecto animalesco do homem quando se vive no limite entre a vida e a morte, ou como gosta de dizer a igreja, entre o céu e o inferno.
Há também sinais de mudança social na figura da filha que se mobiliza junto dos camponeses. O pai não a ouve; a clássica falta de comunicação entre as gerações. Ela tem a cara perfeita para uma revolucionária comunista, e o filme sabe disso, captando um momento que ela marcha na frente de uma multidão de humildes. Mas essa mudança social também está nos ricos, na figura do filho do dono das terras que produz o grão, e que realiza contrabando escondido do pai. O que o filme faz então é denunciar, bem sutilmente, a flexibilidade moral entre uma geração endurecida pela seca e uma outra, mimada demais.
Todos os elementos da história residem nos seus personagens, que não podem evitar serem arquétipos universais do sofrimento humano na sociedade contemporânea. Mas mesmo com esse controle narrativo absurdo que o Cinema proporciona, este filme não consegue prender a atenção de quem o assiste. Talvez falte a fagulha criativa do homem quando este morre de fome sem comida nem princípios. Mas estou especulando. A história é reta, mas sua interpretação inteiramente subjetiva. Faltou um pouco de inspiração de Eisenstein e outros teóricos russos sobre a manipulação na montagem do filme.
Raiva é um filme sobre a pobreza em vários sentidos, não apenas material. Seus personagens são desagradáveis, como devem ser. Este é um filme ironicamente anti-humanidade, pois defende que ao se retirar tudo de um homem só lhe resta a emoção crua. Como um animal. E animais são abatidos para virar alimento. Logo, não entendo todo esse alvoroço pelos pobres. Além de tudo é contraditório.
“Raiva” (Por/Fra/Bra, 2018), escrito e dirigido por Sérgio Tréfaut, baseado em livro de Manuel da Fonseca, com Isabel Ruth, Leonor Silveira, Hugo Bentes.