De dentro das entranhas da ficção científica está sempre sua proximidade com a realidade. Não através do real, mas sempre contando a seu favor com mecanismos de metáforas e alegorias. Como se tivesse sempre a necessidade de discutir o que está ao seu redor através dessa fantasia envolvendo, muitas vezes, modernidades e avanços tecnológicos que refletem aquilo que está fora da salas de cinema. Resistência faz absolutamente tudo isso e mais um pouco.
Esse “mais um pouco” está diretamente ligado ao trabalho do diretor Gareth Edwards e sua vontade de criar um mundo, quase sempre outra característica da ficção científica e que aqui pode ser considerada até um dos grandes destaques do filme. É fácil se perder no mundo de Resistência, essa mistura de realidade e tradicional com o brilho fantástico do moderno (o que recorre completamente ao clássico Akira). O resultado disso se dá muito pela opção do diretor de filmar tudo fora do estúdio e deixando para a Industrial Ligh&Magic “melhorar” aquele mundo real com esse futuro próximo.
Edwards também escreve o filme, em parceria com seu parceiro de Rogue One, Chris Weitz. A ideia deles, a premissa do filme, passa por essa realidade extrapolada. Como se fizesse parte intrínseca da diversão o espectador enxergar seu mundo na tela grande em termos de costumes, ideias e evoluções. Além de, é claro, uma discussão que parece tão perto, mas, ao mesmo tempo, longe.
Em um mundo onde a inteligência artificial faz parte da humanidade há algumas décadas, o segundo passo nessa evolução foi dado e robôs começaram a conviver pacificamente com os humanos, o que permitiu a subida a um degrau mais alto, o dos Simulantes, robôs ainda mais próximos dos humanos em termos de visual.
Esse convívio pacífico acaba quando uma bomba atômica é lançada dentro do próprio território de Los Angeles, o que faz com que todos seres de inteligência artificial comecem a ser exterminados no ocidente, exilando-os na Nova Ásia, onde vivem pacificamente e conseguiriam se desenvolver e conviver em paz se não fosse o governo dos Estados Unidos, que declara guerra contra toda “vida artificial”.
Uma década depois da proibição de IA do lado de cá do mundo, Joshua (David Gordon Washington) é um agente infiltrado em uma célula de resistência pró-IA. Seu alvo é Nirmata, uma figura adorada pelos seres artificiais como um Deus, mas ele acaba se apaixonando, casando com a líder do grupo e acabando por se separar dela depois de um ataque do ocidente que acaba com seu disfarce.
Ao melhor estilo Apocalipse Now, cinco anos depois Joshua é então convencido a voltar até a Nova Ásia para capturar uma nova arma criada por Nirmata, o que lhe dá a possibilidade de encontrar sua esposa, supostamente morta. Uma decisão que lhe coloca no caminho de Alphie (Madeleine Yuna Voyles), última esperança da IA pela sua liberdade.
Citando agora Lua de Papel, de 1971, dirigido por Peter Bogdanovich, Joshua e Alphie precisam cruzar a Nova Ásia, tanto para fugir dos soldados Americanos, quanto para encontrar sua ex-esposa. O que faz com que os dois criem uma relação de aproximação que faz Joshua repensar todas suas questões sobre esses “seres artificiais”.
As aspas talvez estejam aí para aprofundar a grande questão dos filmes de Gareth Edwards, essa humanização da IA que os Estados Unidos preferem rebaixar ao lugar de coisa. O diretor volta à referência asiática e vietnamita de Apocalipse Now e Platoon, para enxergar a violência e desprezo com que os soldados ocidentais tratavam os moradores locais em suas aldeias. A metáfora é clara e o visual segue o mesmo caminho, o que é um espetáculo. Principalmente diante dos planos abertos e poderosos da lente de Edwards e dos diretores de fotografia Greig Fraser (de Rogue One e Duna) e Oren Soffer.
Diante desse mundo moderno, os horizontes são recortados por edifícios, construções e transportes que, o tempo inteiro, lembram o espectador de que eles estão um mundo fantástico e um futuro que cresceu em meio à realidade. A nave USS Nomad pairando na estratosfera como símbolo dessa opressão americana é sempre um desenho sobre a inferioridade dos inimigos e de como a IA e essa resistência parecem lutar uma luta que nunca vencerão.
Do mesmo jeito, Edwards sabe encaixar nessa estética aberta em suas cenas de ação, o que dá a elas um peso quase documental, como se a melhor opção fosse ficar longe do perigo, recorrendo mais uma vez às filmagens do conflito no Vietnã nos anos 60.
Suas opções são poderosas quando querem que o espectador sinta o poder daqueles conflitos, mas ao mesmo tempo são sutis quando constroem esse mundo. É possível ver os robôs rezando, trabalhando, emocionados e emocionando, mas sem serem o foco da ação, apenas como um detalhe que engrandece esse mundo e enterram mais ainda Joshua nessa realidade onde é impossível desvincilhar o que é ou não humano. Uma discussão filosófica que não desgarra do filme nem por um segundo sequer e que o torna único.
Não único por discutir isso, afinal Blade Runner já o fazia com maestria, mas por colocar isso dentro de um filme que, por definição estética e narrativa, é uma produção de ação frenética e que foca no público que irá encher um grande balde de pipocas enquanto se empolga com os tiros, bombas e dramas que acompanham os personagens até sua última cena. É lógico também que Resistência não tem pretensões herméticas, muito pelo contrário, seu objetivo é claro e suas emoções e lágrimas podem até serem fáceis de adivinhar, mas funcionam absolutamente bem e fazem valer cada dólar investido em Gareth Edwards, que mais uma vez desconstrói um gênero para discutir algo além do óbvio, como em Monstros, Godzilla e no próprio Rogue One.
Mais uma vez Edwards mergulha na ficção científica para discutir o mundo ao seu redor, e mais uma vez o resultado tem absolutamente todos detalhes e intenções necessárias para fazerem o filme ser lembrado por um bom tempo depois de seu final. Isso através de uma ideia inteligente, ação empolgante e um visual deslumbrante. Tudo obrigatório para um filme do gênero se tornar obrigatório, o que, definitivamente, é o caso de Resistência.
“Creator” (EUA, 2023); escrito por Gareth Edwards e Chris Weitz; dirigido por Gareth Edwards; com Johns David Washington, Madeleine Yuna Voyles, Gemma Chan, Allison Janney, Ken Watanabe, Sturgill Simpson, Amar Chadha-Patel, Marc Menchaca e Ralph Ineson.
SINOPSE – Em um mundo onde a inteligência artificial gerou uma guerra entre o ocidente e a Nova Ásia, um ex soldado parte em uma jornada para capturar uma arma que pode acabar com a guerra, mas encontra muito mais do que isso