Se existe um momento na carreira dos grandes cineastas que eles se sentem seguros para realizarem aqueles filmes que ninguém aceitaria no começo de suas carreiras, Abel Ferrara já faz isso há tanto tempo que é fácil entender suas motivações em Sportin´Life.
Ferrara deixa sua câmera ligada para enxergar, principalmente, ele próprio e seu protagonista em Sibéria, Willem Dafoe, enquanto lançam o filme no Festival de Berlim. Mas existe mais coisa além disso, o documentário discute tudo que está ao redor desse momento, das entrevistas até a epidemia de Covid-19.
É um deleite para qualquer fã de cinema escutar Ferrara e Dafoe falando sobre seus filmes. Ferrara parece quebrar uma série de certezas de todos, como se esperasse aquele jornalista cheio de teorias escorregar nas próprias pretensões para deixar claro o quanto está no controle de seus filmes, por mais que muita gente ache o contrário. O diretor pode ter seu jeitão meio hermético em alguns filmes, mas com certeza é um prazer ver o quanto tudo faz sentido nas palavras desse gênio da sétima arte.
Falando em “gênios”, Dafoe é um show à parte em Sportin´Life. A segurança de suas ideias e conceitos é incrível, uma consciência de atuação impressionante e emocionante.
Mas como o próprio Ferrara aponta, Sportin´Life é um documentário sobre a arte de fazer documentários, mas parece recusar a ideia de que esse tipo de produção seja mais realidade que um “filme comum”. Até porque não existe nada de comum em nada assinado por Ferrara, muito menos um tipo de filme como esse.
Sua câmera não se prende ao tema principal, monta um mosaico que passa, tanto pela apresentação de sua banda, como também atenta, ao vivo, a explosão da pandemia de Coronavírus pelo mundo. Ferrara não perde a oportunidade de tentar deixar clara suas críticas ao governo dos Estados Unidos e do modo irresponsável e atabalhoado com que tratou a epidemia, mas, ao mesmo tempo, enxerga as dores e mortes através da barreira da televisão, quase como um diário.
A dispersão estrutural de Sportin´Life faz com que tudo aconteça ao mesmo tempo, ágil, quase picotado e repleto de ideias e sensações. Mas discute os assuntos, tenta entender um pouco do que é sua arte, assim como, deliciosamente, lê uma crítica falando mal de Sibéria, tudo enquanto o mundo, do lado de fora, enfrenta um vilão invisível.
Ferrara liga sua câmera nas ruas de Roma, onde reside, e só vê o vazio. Sabe que esse é o retrato de um novo mundo. Dafoe aponta que esse “novo mundo” é um lugar onde Deus tirou dos humanos tudo aquilo que veneravam, dos esportes aos artistas, é preciso encontrar esse novo lugar dentro dessa realidade. Ferrara junta tudo isso em uma experiência extremamente política e atual, e mesmo dispersa, serve para seu espectador pensar um pouco a respeito de tudo que está acontecendo.
“Sportin´Life” (EUA, 2020); dirigido por Abel Ferrara
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