Ted Lasso e o futebol feito por gente | Serial CinemAqui

Ted Lasso e o futebol feito por gente | Serial CinemAqui


Football is life. Quando Danny Rojas (Cristo Fernández) corre de um lado para o outro do campo, sorrindo ao repetir a frase-clichê, é possível que o espectador coloque os dois pés atrás e desconfie de Ted Lasso logo em seus primeiros passos para roubar sua atenção. É muita felicidade por metro quadrado, podem pensar os mais pretensiosos consumidores vorazes de séries.

Em poucos minutos, descobrimos que a tão aclamada produção da Apple TV+ tem no centro um treinador de futebol americano que viaja dos Estados Unidos para a Inglaterra com a missão de comandar o AFC Richmond, pequeno clube de “soccer” da Premier League, o mais poderoso campeonato nacional de clubes de futebol masculino do planeta. Não tem como isso dar certo e o fã do esporte bretão sabe bem, aumentando sua desconfiança: parece ser mais uma comédia forçada, de pouca verossimilhança, talvez até difícil de continuar os episódios com empolgação. E quem não liga para aqueles 22 caras correndo atrás da bola para chutá-la dentro da caixa retangular com uma rede, pode se sentir intimidado, pouco atraído, com receio de encontrar pelo caminho um amontoado de piadas que exigem bagagem e conhecimento sobre o ludopédio.

Se existissem, os dois espectadores hipotéticos estariam equivocados em seu julgamento prévio sobre a obra vencedora do Emmy. Certo, mesmo, apenas Danny Rojas. “Football is life”, sim: nos 22 episódios lançados até agora (10 da primeira temporada e 12 da segunda), Ted Lasso prova que o futebol é, sim, uma metáfora bem eficaz para a vida aqui fora. E muitas vezes, a vida aqui fora também é uma perfeita metáfora para o futebol dentro das quatro linhas. Se incorporamos um bocado de expressões boleiras ao nosso vocabulário cotidiano, não deve ser à toa. E a série desenvolve essa verdade com episódios muito bem amarrados, sem desperdiçar personagens. Ninguém está ali à toa. Preste muita atenção, pois cada ser humano passando em sua tela irá se desenvolver, para o bem ou para o mal, amadurecendo e se transformando de um jeito profundo demais para rotular esse experimento audiovisual como mero escapismo.

Até porque vivemos numa época peculiar para as comédias. Cada vez mais, despontam produções que dispensam o riso fácil. Há sempre um lado sombrio e melancólico a ser explorado, de Ted Lasso a Fleabag, passando por Veep, Bojack Horseman e tantas outras que eu ainda não conheço nessa floresta de streamings. Todas bebendo um pouco de Os Simpsons e herdando muito de Seinfeld. Esta segue e seguirá atemporal como referência, parindo produções com refinamento estético e roteiros de dar inveja a muitos dramalhões por aí. Ao contrário de uma sitcom tradicional, neste grupo o riso custa caro. É preciso atravessar um exército de questionamentos, internos e externos, para depois de algum tempo erguer os cantos da boca com muito mais espontaneidade do que na produção industrial de piadas, mais comum em outros tempos. Há sempre a sombra e o drama oculto, a lágrima à espreita, a graça de mãos dadas com a tragédia incalculável. Afinal, somos todos ridículos e rir de nós mesmos é um pequeno passo para o cotidiano, mas um grande passo para impedir um massacre dos problemas emocionais nos perseguindo enquanto não conseguimos nos reconectar e entender mais de autoconhecimento.

A Escalação

E se eu disse que vivemos numa época peculiar para as comédias, sem optar pela expressão “era de ouro”, é para evitar qualquer pretensão acima do tom ou fazer um exercício equivocado de futurologia sobre os rumos de um gênero que muito me cativa e interessa, especialmente quando uma produção brilhantemente escrita com humor sutil e profundo ao mesmo tempo encanta tantos internautas nas redes sociais, lugares cheios de certezas absolutas.

Talvez, se quisermos entender um pouco melhor sobre este fenômeno, precisemos olhar com uma lupa para alguns dos personagens principais da série. Não se preocupe, o leitor está livre de spoiler e não tenho a menor pretensão de esgotar todos os aspectos nesta humilde análise de botequim.

Ted Lasso (Jason Sudeikis) é o óbvio protagonista. Isso não significa que ele monopolize a tela e apenas seus problemas importem para o espectador se envolver com a trama. A ingrata missão de migrar para o futebol que leva a sério o próprio nome e só se importa em jogar com os pés parece não ter o menor sentido. E por que teria, se em boa parte dos nossos dias a vida não tem sentido ou explicação?

Ao longo dos episódios, entendemos a conta-gotas sua motivação para cruzar o Atlântico e repetir piadas sagazes, mas nem sempre compreendidas, sobre a aventura longe da esposa e filho. Seu jeito de encarar os dias, tanto na vida pessoal quanto na liderança do AFC Richmond, é de um otimismo contagiante. Mas ele não cai na superficialidade dos palestrantes motivacionais autores de livros ruins de autoajuda. Ted é um “coach”, mas no sentido esportivo, mesmo. Não se engane. Por trás do seu bigode há um sorriso, mas também um homem quebrado.

Prometi não dar spoilers e vou cumprir: Ted Lasso, a série, é composta quase que exclusivamente por homens e mulheres quebrados por dentro, buscando a reconstrução e em alguns casos caindo no erro de deixar os cacos debaixo do tapete. O melhor é juntá-los, mas sempre há tempo para aprender. Ted Lasso, o personagem, também encara o futebol de um jeito muito mais maduro do que o futebol se encara. Ganhar a qualquer custo não é seu intuito e ele sente dificuldades em entender como um esporte aceita empates. Derrotas são importantes para nossa formação. Se perdemos ontem, seguimos hoje, na certeza de que ainda perderemos amanhã e depois de amanhã. Faz parte da vida perder. Guarde isso, voltaremos a falar das derrotas mais para frente.

Ted Lasso é um ser humano trabalhando com seres humanos. Cobrado por seres humanos e cobrando seres humanos. O treinador se entende como gente e trata a todos como gente. Quem dera o futebol fora da ficção entendesse isso, individual e estruturalmente, e colocasse só um pouquinho disso em prática. Como metáfora da vida, apenas reflete o quanto aqui fora esquecemos que as cidades, o trabalho, as famílias e a vida são feitas essencialmente de gente, por gente e para a gente.

Rebecca Welton (Hannah Waddingham) é a dona do AFC Richmond. Quebrada por dentro, passou por um conturbado divórcio com o antigo proprietário do clube. A traição pública carece de vingança e nada melhor do que destruir a grande paixão do ex, o AFC Richmond. A melhor solução é contratar um desavisado, Ted Lasso, o gaiato com a missão de comandar o time e, se tudo der certo, conduzi-lo ao rebaixamento e à sua extinção. Parece uma motivação boba? E é mesmo. Clichê óbvio? Sim. Sabemos que em algum momento ela passará a amar o clube e se verá numa encruzilhada com as pessoas com as quais se apegou? Sabemos, está na cara. Mas para isso, é preciso notar a transformação dessa mulher elegante e fechada emocionalmente.

Seu crescimento como pessoa beira o absurdo, tanto quanto a interpretação impecável. E são dela as duas cenas que mais me tocaram. Curiosamente, ambas são musicais, mais ou menos na mesma altura dos episódios da primeira e da segunda temporada, e demonstram muito do momento e da personalidade de Rebecca: sua cantoria no karaokê com o elenco cantando “Let It Go” (sim, “da” Frozen) e na igreja, com “Never Gonna Give You Up”, de Rick Astley. Obras-primas dentro de uma obra-prima.

Leslie Higgins (Jeremy Swift) parece ser o símbolo do fracasso. Logo de cara, pode-se pensar nele como mero capacho da chefe. O tempo passa, seu espaço aumenta e percebemos que ali está o personagem mais sábio da série. Bem resolvido, aparece com frases e conselhos que nos fazem pensar junto com os questionadores angustiados. Não se engane como eu me enganei ao subestimá-lo.

Há um trio interessante. Jamie Tartt (Phil Dunster) é o típico boleiro egocêntrico. Não é para menos, ele é bom jogador, o craque do time. Mas sua vaidade irrita até uma estátua. Vive num mundo à parte e pouco se importa com os colegas de elenco. Suas motivações surgem aos poucos para jogar na nossa cara que na vida real não existem mocinhos e vilões, mas seres humanos cheios de complexidade. Jamie tem um estranho relacionamento com Keeley Jones (Juno Temple). É possível que você se assuste e pense que a série pode encaminhá-la para o caminho fácil de uma personagem identificada com o arquétipo da maria-chuteira. Não duvido que essa isca tenha sido muito bem pensada na sala de roteiristas para aprofundar questões relativas ao machismo e a masculinidade tóxica, tão presentes no futebol. Principalmente quando a tensão sexual entre Keeley e Roy Kent (Brett Goldstein) cresce. Isso porque ele é o ex-ídolo de Jamie. Agora, está em seus últimos anos de carreira. Se todo jogador de futebol morre duas vezes (o fim da vida e o fim da vida de esportista), acompanhar seus últimos dias e sua perambulação no Além-Bola é curioso.

E já que falei em machismo e masculinidade, é interessante notar a construção de um Roy Kent impassível, sem demonstrar emoções ou esboçar sorrisos, mesmo constrangido quando sua sobrinha copia seus incontáveis palavrões na escola.

Meu último personagem destacado é Trent Crimm (James Lance). Em suas primeiras aparições, o jornalista faz questão de ressaltar que é o cara escrevendo para o jornal The Independent. E vê nisso uma importância gigantesca. Certamente, Trent acredita saber mais de futebol do que Ted e sua comissão técnica. Em tempos de permanente ataque à imprensa por parte de governantes cretinos, temos aí um bom arco para profissionais da comunicação aprenderem sobre como o excesso de personalismo também contamina e dificulta o trabalho da boa mídia. Há muito tempo, fui repórter e encontrei “projetos de Trent Crimm”. Diferentemente do personagem, alguns seguem com a mesma empáfia das primeiras aparições de Trent. Se essa postura já é lamentável por si só, também pode causar estragos de proporções preocupantes quando grandes veículos de comunicação dividem espaço com as redes sociais, onde qualquer mal treinado viraliza ao vomitar informações irresponsáveis. A pandemia está aí para não me deixar mentir. Trent Crimm tem posturas, boas e ruins, que poderiam ser demonstradas nas salas de aulas das faculdades de jornalismo.

Os três Pontos

Na ficção e no futebol, até os ateus se permitem crer e clamar por milagres. Talvez por isso, Ted Lasso gere identificação profunda nos espectadores que seguem em frente. Mesmo sem ter coordenação para correr por 10 metros conduzindo uma bola com os pés, sabemos o que é aquela dificuldade para se manter no pelotão principal. Temos, todos nós, um pouquinho de AFC Richmond. Somos um time pequeno lutando pela sobrevivência e celebrando cada pequena vitória do cotidiano. E fazemos festa como se ali conquistássemos um grande título.

Se nesta ou naquela rodada conquistamos três pontos, foi com muito suor e mais sabor do que na rotina de glórias artificiais dos multimilionários, financiados por patrocinadores escusos, incapazes de entender o que é ter alma e compartilhar dos sentimentos coletivos.

Assim, Ted Lasso pendura um cartaz com a inscrição “believe” para seus comandados acreditarem. Não na vitória a todo custo, como o futebol profissional insiste em enfiar goela abaixo multiplicando demissões rápidas, brigas entre rivais e insanidades a perder de vista. No esporte que fomos ensinados a amar, não é permitido perder. Na sociedade da correria, da hiperconexão e da produtividade a qualquer custo, esquecemos que até no empate pontuamos.

Nesse sentido, Ted Lasso pode até soar como um antifutebol. É contrário ao esporte que passa quarta e domingo na sua televisão, mas não ao esporte em sua essência, como aprendemos na escola. Na série, percebemos que deixar para trás as derrotas não significa esquecê-las ou apagá-las de nossas histórias. Elas formam personalidade e caráter.

Sem ser didática, ainda nos leva a perceber que passar muito tempo escondendo as próprias fraquezas é um desperdício, porque elas aparecem sem nosso consentimento. E clubes profissionais de todo o mundo contam com setores de análises de desempenho para identificar onde estão as falhas dos adversários, trabalhando nelas para vencer na rodada seguinte, explorando fragilidades sem aviso prévio.

Se isso pinga de jeito leve, sutil e descontraído sem ser leviano na primeira temporada, a segunda cava mais.

A profundidade é tocante. Chega a ser difícil se conformar com o passar das horas nos impedindo de assistir a mais um episódio, só mais um. E os questionamentos brotam com refinamento estético apuradíssimo: embora longe da superficialidade, são fáceis de capturar também pelo espectador menos treinado. Quantos traumas nos impedem de seguir a vida? Quais derrotas do passado insistem em nos convencer de que nunca mais seremos capazes de erguer uma taça? Quantos lutos vivemos e revivemos todos os dias de nossas vidas, como se aquele dia nunca terminasse? Quantas vezes nos punimos pelo mal que outras pessoas nos fizeram, como inocentes condenados à prisão perpétua?

Notem que tudo isso vai aparecendo aos poucos, numa construção tijolo a tijolo no tempo certo, sem pressa. Até o surgimento de fios brancos ou o uso de arco nos cabelos são dicas de transformações profundas na personalidade de alguns personagens.

“Football is life” porque “life is like football”. Perdemos tanto porque nem sempre o melhor vence. E não há nada que possamos fazer para mudar essa lei não escrita. Não há nada que se possa fazer por quem não gosta do esporte: ele continua gigantesco. Não há nada que se possa fazer para convencer os blasés da bola sobre a grandeza disso tudo: eles têm esse direito.

Se é fato que existe uma dificuldade gigantesca de produzir ficções verossímeis com o futebol como pano de fundo, Ted Lasso leva a régua lá para cima. Aceitação, machismo, relacionamentos, traumas, terapia, ansiedade, depressão, suicídio, traição, empatia, luto, perdão. Está tudo lá. Tem mais, tem humor também. Me perdoem a expressão-clichê: Ted Lasso é muito (muito, muito, muito…) mais do que uma comédia sobre futebol.

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