Titane | Sobre segundas chances e cicatrizes

Titane | Sobre segundas chances e cicatrizes

O que une os dois distintos momentos de Titane é o desconforto. Tanto do espectador, que parece estar cara a cara com uma história mais crua e visceral que esperava, quanto pela personagem, presa dentro dela mesma.

Em um primeiríssimo momento, Alexia ainda criança sofre um acidente de carro com o pai e recebe uma enorme placa de titânio na lateral da cabeça, o que desperta nela uma espécie de relação com o automóvel, assim como a afasta dos pais. Já jovem, vivida pela Agatha Rousselle, Alexia se torna uma espécie de “stripper automotiva”, participando de um show onde dança sobre carros… ela também tem um (digamos assim) relacionamento próximo com o veículo… assim como vem enfileirando uma série de assassinatos.

O perturbador desse primeiro momento não está no choque visual, mas sim no glamour e na naturalidade com que a diretora e roteirista Julia Ducournau trata disso. A beleza de suas opções estéticas cria um mundo que é ao mesmo tempo brilhante e apagado. As luzes e cores desse mundo sexy e o apagado de Alexia, que parece vagar por esse mesmo mundo sem um objetivo muito maior do que exprimir suas emoções.

Alexia não parece quebrada ou suicida, mas sim movida por uma raiva maior do que sua capacidade de suprimir isso. É preciso liberar essa energia, seja com um carro (no “sentido bíblico”), seja com a violência desenfreada. Alexia não cabe nela, e talvez esse seja o único jeito dela sobreviver após um massacre.

Titane | Crítica do Filme | CinemAqui

Nesse segundo e completamente distinto momento de Titane, Alexia se faz passar pelo filho há muito tempo desaparecido do capitão de uma brigada de bombeiros, Vincent (Vincent Lindon). A relação do dois se transforma em algo doloroso e simbiótico. Alexia precisa de Vincent e ele vê no filho a única esperança de (aparentemente) conviver com a perda e a com a culpa.

A “culpa” fica subentendida, está lá em um relance de lembrança do bombeiro, mas é um caminho sem volta que o faz acreditar que Alexia é realmente seu filho. Já ela precisa então lidar com uma transformação, não só uma metáfora com a transição de gênero, mas ainda com a ideia de que o único jeito de ser amada e ter essa raiva contida é não sendo ela mesma. Tem ainda uma gravidez automotiva envolvida, mas isso é apenas uma busca por um significado maior.

E Titane está sempre nessa busca. Uma experiência que leva o espectador por esse caminho onde essas almas quebradas encontram a possibilidade de terem uma segunda chance, nem que seja baseada em uma completa e angustiante mentira. Ducournau não afaga seu espectador com decisões fáceis, pelo contrário, vai mergulhando cada vez mais nesse lugar que parece não ter volta. E não têm.

Por isso, Titane não te convida para uma conclusão feliz ou alegre, mas sim um lugar onde todas essas dúvidas, mentiras e angustiam, dão lugar para uma esperança que se entranha em um lugar esquisito e incômodo.  A diretora não desvia o olhar da violência, nem desse lado “cronemberguiano”, como se soubesse que o mais perturbador não é o gore, mas sim a sensação de que realidade e ficção estão tão próximas que é difícil descolar uma da outra.

Titane vem com o prazer da dança de olhos fechados, como se o mundo sumisse e tudo começasse a fazer sentido. Alexia e Vincent só querem isso, fechar os olhos e estarem em um mundo onde tudo faça sentido para eles, apesar dos erros, violências e arrependimentos. Ducournau constrói para os dois esse mundo onde será possível se redimir disso tudo, mesmo que as cicatrizes não sumam.

Talvez o que una os dois momentos de Titane seja a esperança. A vontade de suprimir essas dores que tanto os machucam.


“Titane” (Fra/Bel, 2021); escrito e dirigido por Julia Ducournau; com Vincente Lindon, Agathe Rousselle, Garance Marillier e Bertrand Bonello


Trailer do Filme – Titane

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