True crime e castigo

Noite dessas, tive um pesadelo. Num fim de tarde cinzento, voltava para casa depois de um entendiante dia de trabalho. Desci do ônibus, olhei para os dois lados e atravessei a pista de mão dupla a duas quadras de casa. Passei na frente de um terreno abandonado e vi o ciclista na contramão. Nada de pedestres nas calçadas, nem carros passando para lá e para cá. As poucas lojas no entorno fecharam mais cedo, o bairro parecia deserto.

Tentei mudar o caminho, mas ele me acompanhou. Armado, anunciou o assalto, levou o meu celular e me deu um soco. Avisei familiares e segui o protocolo das postagens nas redes sociais, alertando contra possíveis golpes.

Não parou por aí. No sonho ruim, o jornal do almoço fez questão de usar as imagens do roubo para reforçar a sensação de insegurança na população tão assustada. Sem minha permissão, usaram o meu prejuízo em público para garantir uns pontinhos a mais na audiência.

Nada é tão ruim que não possa piorar. O tempo passa rápido demais nos pesadelos. Depois de umas semanas, talvez uns meses, recebi o contato de uma produtora. O meu assalto viraria uma série documental em cinco episódios. Mostrariam todos os detalhes do crime, contextualizando a minha vida, o meu trabalho, o meu bairro e o histórico de violência da região. Entrevistariam familiares, esgotariam as filmagens das câmeras de segurança. No último episódio, os documentaristas tentariam entrevistar o assaltante. Mas ele foi morto a tiros e ninguém daria mais detalhes.

Acordei assustado. No meu pesadelo, um dia comum me transformava em personagem central de uma série “true crime”. O meu prejuízo se converteu em entretenimento. Eu era parte da moda de gosto duvidoso que toma conta dos streamings. Suando, achei o meu celular embaixo do travesseiro. O aparelho ainda estava ali. O meu pesadelo era uma ficção de violência urbana. Ficção de violência urbana, repeti em pensamento. Uma vacina eficaz contra a epidemia de exaustivas autópsias dos crimes reais.

Urbanos e impuros

A ficção permite compreender a realidade de um jeito mais profundo que a realidade. Percebemos ali a humanidade existente até no mais cruel dos vilões. Nos atentamos a nuances que passam despercebidos no dia a dia caótico. Sob o ponto de vista de gente cretina, questionamos as nossas crenças mais enraizadas. Expandimos, viajamos, vivemos outras vidas. Nos despimos da brutalidade diante da mais pura brutalidade.

Se parece clichê, é porque todo clichê tem muitos fundos de verdade. Da última década para cá, os streamings também curtiram a ideia de investir em séries brasileiras sobre violência urbana e criminalidade. Nelas, a favela e a periferia não são um lugar distante, mas um espaço central. É dentro delas que as tramas acontecem. Sem estigmas, com contradições humanas.

Longe do punitivismo dos programas policialescos nas tardes sangrentas da televisão aberta, jogam na nossa cara como em lugares onde o poder público só aparece em viaturas dando bom dia com tiros ou com papéizinhos na mão de engravatados pedindo votos, as escolhas não são tão fáceis quanto quem mora no asfalto costuma pensar. Dialogam, bebem da fonte, ou são herdeiros diretos de filmes como Cidade de Deus, presente em qualquer lista respeitável de melhores da história do cinema nacional.

Impuros chegou nessa leva. Disponível no Star+, a série tem como cenário o Rio de Janeiro dos anos 1990, onde os problemas sociais colocam o mundo do crime como a oportunidade perfeita para mudar de vida. Nada diferente dos nossos dias, onde a ética das escolhas sempre é debatida por quem faz três ou mais refeições por dia. Evandro do Dendê, o Evandro de Raphael Logam, tenta fugir desse caminho na primeira temporada, mas se transforma nas seguintes. Se o poder transforma Evandro, a atuação transforma Logam, não à toa indicado ao Emmy Internacional pelo papel. Se eu fosse enumerar os conflitos que deixam a série cada vez melhor, o leitor e a leitora passariam longas horas nesse texto.

Quem conhece a realidade do mundo além dos policialescos da tarde sabe que o nome da série não é à toa. Nós, sempre à espera de plots e novas temporadas, somos muito urbanos, e também bastante impuros. Especialmente quando pedimos mais punição para aquela gente que parece mais impura que nós, sentados num sofá confortável tentando exalar pureza e indignação com a violência “cada vez pior”.

Uns contra muitos

Júlio Andrade também foi indicado ao Emmy Internacional. Duas vezes. Culpa da interpretação de Cadu, o protagonista de 1 Contra Todos, série do Star+ que também concorreu ao renomado prêmio da indústria audiovisual. Não é surpresa, quem já viu outros papéis do ator sabe que alguma entidade baixa ali em cada novo trabalho.

O enredo mistura contradições e escolhas difíceis: Cadu perde o emprego e é condenado à prisão por tráfico de drogas. Um engano, uma injustiça. Ele é trabalhador honesto. Mas precisa mentir e se fingir de criminoso para sobreviver à cadeia. Com uma ajudinha aqui, uma tramoia ali e a boa trama do começo ao fim, a história acontece e deixa perguntas indigestas para quem tem mais de dois neurônios.

A Justiça é justa para quem? Qual o sentido em alimentar condições carcerárias desumanas? Quem ganha com o repúdio aos direitos humanos? E os políticos, a quem servem os políticos?

Perguntas semelhantes se repetem em Arcanjo Renegado, do Globoplay. Com bastante ação, sem o mesmo brilho de outras empreitadas. Nela, brincar com vidas para angariar uns votos lá na frente mostra o Brasil em estado puro. De novo, a ficção trazendo questionamentos mais profundos que o oba-oba da diversão à custa de tragédias reais.

Sintonia fina

Muita gente ficou encantada com Sintonia, talvez a série brasileira mais bem-sucedida da Netflix. Se a primeira temporada deixava espectadores com labirintite meio atordoados pelos momentos com estética de videoclipe, da segunda em diante a coisa se ajeita bem.

Quem vem de baixo elogia a verossimilhança dos diálogos. Não fica aquela impressão de gíria forçada, de avô tentando emular a linguagem dos jovens. As coisas são mais ou menos daquele jeito, mesmo.

São três caminhos possíveis para os amigos Nando, Rita e Doni. Tenho a impressão que essa não era a ordem de protagonismo inicialmente concebida para os personagens de Christian Malheiros, Bruna Mascarenhas e Jottapê. Mas como o talento é um milagre da natureza, a melhor atuação é disparada a de quem escolhe o mundo do crime. A garota religiosa tem seus altos e baixos, porque a vida tem seus altos e baixos. O cantor meio mimado dá um pouco de preguiça, talvez mostrando que a vaidade é um elemento indispensável na corrente sanguínea de quem busca a fama.

Intencionalmente ou não, o amigo que escolhe o lado do crime é um garoto negro. Se a violência urbana e a criminalidade preocupam gente bem-nascida, Sintonia tem momentos quase didáticos ao escancarar obviedades, mas em tempos de brutalidade o óbvio precisa ser repetido: cada um de nós, que viemos de baixo, conhecemos pessoas que escolheram o crime por falta de oportunidade e comida na mesa ou mesmo por pressa, na ilusão do dinheiro fácil. Gente bem-nascida fica espantada se contamos a história do primo que virou traficante e do colega de escola cumprindo pena. É como se vir de baixo ou de cima ou dos lados determinasse caráter e conduta.

Sintonia mostra que nessa doença chamada cidade, o sol até nasce para todos, mas a sombra é só para alguns e não usar protetor solar deixa queimaduras sérias. Tudo tem um preço e sempre seremos cobrados.

Da proibição nasce o roteiro

Ninguém me perguntou nada, mas se eu fosse escolher as melhores séries que vi, considerando apenas o meu irrelevante julgamento, seria impossível esquecer as obras-primas Família Soprano, The Wire, (HBO Max) e Breaking Bad (da original AMC e que passou no Brasil pela AXN e Netflix). Nessa ordem. Em comum, o olhar apurado sobre personagens complexos demais para serem vistos apenas como vilões malvadões. O mundo não é plano, nem os seres humanos.

Se descriminalizassem a venda, o uso e o porte de drogas, todas elas, as cidades e os estados e a união teriam mais dinheiro em caixa por conta dos impostos e taxas. A guerra às drogas, sempre com o mesmo vencedor ano após ano, faria os roteiristas dessa trindade audiovisual se desdobrarem em outras tramas envolvendo crime e castigos. (Eu sei que se houvesse um genérico do SUS nos Estados Unidos, não haveria a epopéia de Walter White por cinco temporadas, mas não queria desperdiçar linhas repetindo essa piadinha realista das redes sociais.)

Irmandade, da Netflix, caminha mais ou menos por aí: não fosse a desigualdade racial, não fosse a injustiça da Justiça, não fosse a precariedade do sistema penitenciário brasileiro, não haveria o ódio no olhar do Edson de Seu Jorge. Ambientada nos anos 1990, fica fácil perceber as piscadelas no roteiro, mostrando como as péssimas condições para os condenados criaram as hoje poderosas facções criminosas, com siglas e nomes na boca do povo, mas não de alguns noticiários limpinhos demais para dar nome aos bois.

Fica muito mais interessante amarrar numa teia de anti-heróis as tantas motivações para adjetivar o crime como organizado. Sem a necessidade de criar linhas do tempo contando, do início ao fim, por que isso aconteceu, por que aquilo é daquele jeito. É na metáfora, é na ficção, é na imaginação que entendemos mais de nós e dos outros. Porque temos um pouco do outro, porque o outro tem um pouco de nós. Mesmo quando esse outro está ali, dentro da tela de uma televisão, como vítima de um crime bárbaro repetido à exaustão, na voz do Datena ou da séria série sobre a tragédia alheia, fatiada como um corpo esquartejado em muitos episódios, sempre com o nobre objetivo de engajar o público.

Outros sonhos

Na música Outros Sonhos, os versos de Chico Buarque relatam o impossível: “Sonhei que o fogo gelou / Sonhei que a neve fervia / Sonhei que ela corava / Quando me via (…)”. Se você estiver desavisado, talvez não perceba o fator social na letra aparentemente, e apenas aparentemente, ingênua: “(…) Belo e sereno era o som / Que lá no morro se ouvia / Eu sei que o sonho era bom / Porque ela sorria / (…) De mão em mão o ladrão / Relógios distribuía / E a polícia já não batia / De noite raiava o sol / Que todo mundo aplaudia / Maconha só se comprava / Na tabacaria / Drogas na drogaria”.

A polícia já não batia; o ladrão distribuía relógios de mão em mão; a tabacaria vendia maconha; a drogaria vendia drogas. Sonhar não custa nada.

Outras realidades das nossas realidades projetadas nos sonhos. E na ficção. Além de retratar e transformar, ela também cria outros mundos. Outros sonhos. Nos meus sonhos, esse é o principal campo para as tramas de crime e violência. Todas as boas histórias merecem ser contadas, mas os “true crime” parecem dar as mãos para a preocupação com a vida alheia. Com a desgraça alheia. Com a desgraça nossa de cada dia do sensacionalismo vespertino na televisão aberta. Espreme que sai sangue. Para a realidade, já basta a realidade. Prefiro a ficção.

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