Um Herói | Crítica do Filme | CinemAqui

Um Herói | Mais que uma verdade

Logo após deixar a cadeia em uma saída temporário, o protagonista de Um Herói vai visitar o cunhado em um sítio arqueológico da cidade de Shiraz, no Irã, Nashq-e Rostam. Cravado em uma montanha, o local serve de túmulo para duas figuras conhecidas da história, Dariu I e seu filho, Xerxes. O local é datado de mais de 500 a.C., mas a história que ele traz é apenas um lado da verdade que rodeou aquele período. O que realmente aconteceu, somente os iranianos da época (persas) podem realmente dizer, e isso está para sempre perdido na história.

Talvez esse Um Herói, novo filme de Asghar Farhadi, seja sobre isso, o quanto a verdade é condicionada pelo tempo, não pela realidade. Também mais uma vez o diretor iraniano extrapola um conceito através de uma busca incansável pelo ser humano em sua condição mais crua. Uma crueza que se torna crueldade bem diante dos olhos dos seus espectadores.

O filme, também escrito por Farhadi, é levemente inspirado em um caso real, onde um homem, no caso do filme, Rahim (Amir Jadidi), que em uma saída da prisão acaba ajudando a namorada (e futura esposa) a devolver uma bolsa cheia de moedas de ouro que ela encontrou em um ponto de ônibus. O problema é que a situação sai completamente de controle depois que a suposta dona recupera a bolsa, no entanto essa bondade é descoberto pela mídia e ele se torna uma espécie de herói local.

Na verdade, em absolutamente todos pontos dessa sinopse há um caminhão de pormenores que não permitem que tudo seja “só isso”. Rahim está na cadeia, não pode contar para o outros sobre a namorada, a direção da cadeia decide usá-lo como garoto propaganda e, por fim, a presença do cunhado de sua ex-esposa, Bahram (Mohsen Tanabandeh), verdadeira razão para o protagonista estar na prisão, já que ficou devendo um dinheiro para ele.

Nesse momento talvez surja o conflito mais interessante de Um herói, sobre o quanto o “fazer o bem” deveria ser tratado com um pouco mais de normalidade. Rahim se torna um herói, simplesmente por estar fazendo algo que deveria ser feito por qualquer um. A revolta de seu ex-cunhado passa, tanto por um pouco daquela inveja de antagonista, quanto pela vontade de deixar claro algo que deveria ser óbvio. Rahim não se permite enxergar isso, já que toda essa história é sua única esperança de sair da prisão.

A complexidade de Um Herói é ainda maior e vai carregando o espectador através de uma história que cresce de um jeito exponencialmente perturbador. É impossível não ver esse castelo de cartas ir se montando e esperar apenas que uma leve lufada de vento não o arremesse para longe.

Um Herói | Mais que uma verdade

A construção de Farhadi é de uma precisão que enterra o espectador na poltrona enquanto tudo que pode dar errado começa a dar. A inocência de Rahim é tão verdadeira que não se sustenta, oprimido por uma sociedade que não quer lhe ouvir ou enxergar, são os pequenos desvios que o tragam para uma espiral onde ele não tem mais controle de nada. Sua verdade nunca foi sua, mas sim o resultado dos interesses das pessoas ao seu redor com sua história. Todos tiram proveito da sua honra, mesmo que para isso deixem suas honras de lado.

O próprio Rahim é obrigado a colocar sua honra em jogo, mas precisa lidar com o limite dos meios para entender seu fim. A jornada dele nas mãos de Farhadi e de sua câmera é de um naturalismo sem igual. Talvez poucos cineastas da atualidade tenham uma compreensão tão plena da natureza humana quando o iraniano. Seu protagonista (não herói), é pego nesse lugar à la Ladrões de Bicicleta onde o ser humano em sua definição mais humana, precisa buscar esse meio de voltar a ser… humano. No caso de Rahim, de comprovar sua história.

Um Herói cai nesse lugar onde a verdade do protagonista começa a ser colocada em prova e suas opções o colocam em um túnel onde a única saída é encontrar o limite dessa sua verdade. O custo disso é muito maior do que sua honra. O filme de Farhadi sabe disso desde o começo enquanto acompanha seu protagonista subindo lances e mais lances de escada para encontrar o cunhado no sitio arqueológico.

Depois de subir até o limite da construção o cunhado o convida para descer um pouco para terem uma conversa melhor, Rahim se mostra cansado, mas vai, afinal é o único jeito de contar para seu cunhado o plano que tem para pagar sua dúvida e sair da prisão. Rahim fez tudo certo, mas depois disso chega em um lugar tão na frente que precisa deixar suas certezas de lado e voltar atrás, descer as escadas e aceitar que não é o dono de sua história. Rahim é a ponta mais frágil da corda, e todos interesses ao redor dele são mais fortes do que sua vontade de ser honesto.  O que prevalece não é a verdade, mas sim a verdade dos outros. Resta a ele sua honestidade e sua honra, mesmo que isso não sirva para mais ninguém.

Com um problema na fala, o filho de Rahim presencia toda essa verdade, mas sua voz é interrompida por vazios que não permitem ser ouvida. O menino sabe da verdade, a honra de seu pai talvez o transforme. Rahim por um segundo foi um herói, apenas um no meio de um monte de gente que não queria um herói, mas sim uma ferramenta. Mas a verdade vai ficar com eles, não com o filho dele, que lhe faltam as palavras. Os arqueólogos desse futuro não saberão da verdadeira história, mas sim de uma verdade. Talvez Rahim nem esteja nela.


“Ghahreman” (Irã, 2021); escrito e dirigido por Asghar Farhadi; com Amir Jadidi, Mohsen Tanabandeh, Sahar Goldust, Ehsan Goodarzi, Fereshteh Sadre Orafaiy, Sarina Farhadi, Ali Ranjbari e Mruam Shadaei.


Trailer do Filme – Um Herói

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