Em tempos onde as décadas parecem andar para trás em busca dos piores tempos vividos pelo ser humano recente, Uma Noite em Miami… é obrigatório. Uma oportunidade de ouvir algumas das vozes mais importantes do movimento negro, simplesmente falando.
É óbvio que a gente não tem como saber se aquilo foi verdade, pelo menos, temos certeza de que daquele jeito não aconteceu, mas escutar aquelas vozes é muito mais importante do que cobrar veracidade. O filme é baseado na peça de Kemp Powers, que também assina o roteiro, tem uma intenção clara e isso ele consegue.
O que é verdade é que em 1964 Cassius Clay (Eli Goree) se tornou Campeão Mundial em uma luta em Miami. Também é real que fez questão que três de seus amigos mais próximos estivessem na plateia: o ativista e líder religioso Malcolm X (Kingsley Bem-Adir), a estrela do futebol Jim Brown (Aldis Hodge) e o cantor Sam Cooke (Leslie Odom Jr.). É real ainda que depois daquele encontro entre eles, independente do que tenha acontecido ou não, a vida dos quatro mudou completamente.
Parte da realidade está na peça de Kemp Powers, mas talvez não tudo, e isso com certeza não importa muito. Tudo leva a crer que os quatros estiveram juntos naquela noite em Miami após a luta e conversaram. O filme então embarca na ideia desses quatro ícones do movimento negro nos anos 60 conversando, justamente sobre isso. A responsabilidade de fazer todas essas engrenagens funcionarem fica à cargo de Regina King, em seu primeiro filme depois de três décadas (e um Oscar) como atriz.
O que seria um desafio, ela faz parecer fácil. O curto prólogo com as pequenas passagens que posicionam os quatro dentro do mundo real é preciso e cheio de cenas tão marcantes e poderosas que parecem terem sido feitas por uma diretora muito mais experiente. Seu trabalho nesse primeiro momento é firme, fácil e preciso.
O que vem depois é a aquela sensação que poucos diretores têm: de saber aproveitar o material que tem em mãos. O roteiro de Powers é incrível e inteligente, repleto de frases marcantes e um ritmo poderoso. As conversas entendem bem demais a personalidade de cada personagem, seus questionamentos e comentários constroem esses quatro homens de um jeito visceral e verídico. Você acredita na realidade daquela situação e tem certeza que o quarteto reagiria assim diante de tudo que vai acontecendo.
King não permite que o filme seja apenas uma peça diante de uma câmera ligada, cria uma dinâmica espacial onde sua câmera nunca deixa de contar com composições bem organizadas e que estabelecem sempre a posição de cada um dos quatro personagens dentro do assunto. Seu acerto maior é dar liberdade para o trabalho excelente de seu elenco.
Os quatro conseguem não só criar suas versões dos personagens reais, como aproveitam bem todo esforço do roteiro de humanizar aqueles mitos. Mesmo com o quarteto estando nos auges de suas carreiras, todos estão em um momento delicado de suas vidas, onde seus próximos passos irão arranca-los daquele status quo que tinham conquistado. Ver esses personagens gigantescos de modo tão humanizado e próximo é um deleite para quem aprecia escutar um pouco da história falando, mesmo que tenha uma pontinha de ficção.
O elenco é impecável e tem a difícil responsabilidade de lidar, tanto com a velocidade dos diálogos, quanto com a acidez das ideias e a desenvoltura de suas personalidades. Principalmente Ben-Adir, no papel de Malcolm X, é obrigado a trazer para a particularidade de um quarto de hotel minúsculo a articulação e a grandeza de pensamento de seu personagem enquanto confronta sua realidade com a verdade dos três outros amigos. A humanização do Malcolm X de Ben-Adir é cuidadosa e revela um esmero tanto do ator, quanto da diretora e do roteirista. O trio sabe que sem o conflito da presença do líder islâmico não existiria esse filme.
Já no resto do elenco, mesmo com toda caricatura de Clay na vida real, Eli Goree funciona perfeitamente bem, assim como o Jim Brown de Hodge, que acaba tendo menos espaço, mas constrói bem esse grande homem diante de uma mudança maior ainda em sua carreira, talvez até acanhado por sua insegurança. Já Leslie Odom Jr. dá um pequeno show com seus Sam Cooke, principalmente, por conseguir trazer para o filme toda presença visual do cantor em seus gestos e até uma certa prepotência que dá grande parte do filme a ele.
Tudo funciona perfeitamente bem junto. O resultado é um filme pertinente e obrigatório que discute questões dos anos 60 que, infelizmente, continuam próximas demais ao século 21. As decisões desses quatro personagens mudaram o mundo e transformaram as décadas que vieram depois. O que é real ou não dentro daquele hotel importa pouco dentro do legado das palavras e das ações desses quatro personagens que se tornaram mitos.
Em certo momento, Malcolm X lembra o quanto o que é bom para o rebanho pode ser uma má notícia para o lobo. Uma Noite em Miami… é então um filme para ser visto e que todas aquelas ideias sejam absorvidas e, quem sabe, sirvam de ponto de partida para muitas mudanças, azar do lobo.
“One Night in Miami…” (EUA, 2020), escrito por Kemp Powers, a partir da peça de Kemp Powers; dirigido por Regina King; com Kinglsey Bem-Adir, Eli Goree, Aldis Hodge, Leslie Odom Jr., Lance Reddick, Christian Magby, Joaquina Kalukango, Nicolette Robinson e Michael Imperioli