Talvez as boas intenções de A Mulher Rei acabem sobrepujando seus defeitos e isso é ótimo para o filme. Enquanto ele acerta, é um épico empolgante, com um visual deslumbrante e uma potência incrível, mas quando erra, com certeza leva o espectador para um lugar de dúvidas e objeções do tipo “será que isso vai acabar logo?”.
E se isso parece simplificar o filme de modo pouco objetivo e apressado, é justamente porque é isso que mais falta em A Mulher Rei: objetividade. Isso e uma vontade de construir o roteiro com um pouco mais de carinho.
Dana Stevens é a responsável pelo roteiro. Recentemente, ela assinou Paternidade, para a Netflix, mas lá atrás, em 1998, foi culpada pelo remake ruim Cidade dos Anjos. Curiosamente ainda, parte da ideia parece ter nascido da atriz Maria Bello que também assina o roteiro em sua primeira experiência na função. O que em nenhum dos casos deveria ser uma desculpa para os tropeços do filme. Os erros estão em um lugar mais profundo.
O filme é baseado na história real do Reino de Daomé, que de 1600 até 1904 esteve presente no lugar onde hoje está o país de Benin. O filme, por sua vez, acontece durante o ano de 1823, quando os Daomeanos entraram em conflito contra os Oyo, um reino maior e mais poderoso. E grande parte dessa vitória ficou nas costas das Agojie, um exército de mulheres que eram uma espécie de guarda real do Rei e eram conhecidas pelos europeus como as “Amazonas de Daomé”.
A liderança das Agojie fica com Nanisca (Viola Davis). Desde o começo do filme a selvageria e brutalidade de seu exército se tornam o ponto alto de A Mulher Rei, já que a direção de Gin Prince-Bythewood, valoriza bem, tanto as coreografias das lutas, quanto o trabalho corporal das atrizes. O que é uma melhora significante desde seu último trabalho em The Old Guard, onde parecia optar por cenas muito fechadas e perdia grande parte da ação. Mas aqui é diferente.
Por mais que uma provável imposição do estúdio para “suavizar” o filme não permita nenhum golpe, sangue ou violência “on screen”, a diretora usa bem esse impedimento para valorizar e dramatizar as cenas com movimentos bruscos e cortes cheios de estilo e força. Portanto, enquanto as Agojie estão cortando, matando, decapitando e saltando por aí, A Mulher Rei funciona e ainda celebra a força dessas guerreiras negras que marcaram o século 19 e se tornaram lendas.
Por mais que as Agojie tenham contra elas próprias uma certa precisão histórica que não as pintaria tanto assim como heroínas e mais como soldados obedientes sob o comando de um Rei muito menos simpático e muito mais escravista e opressor, A Mulher Rei está muito mais preocupada em focar nessa história de lutas e orgulho. Tudo bem, parece passar um pano para a precisão histórica, mas Hollywood vem fazendo isso há 100 anos quando conta suas histórias épicas sobre brancos, não deveria ser um problema agora fazer o mesmo para os negros. Portanto, reclamar disso seria apenas não entender as intenções do filme e, com isso, projetar para sim mesmo o filme que você gostaria e não aquele que ele quer ser.
Infelizmente o roteiro parece cair nessa própria armadilha e se deixar desviar por uma vontade incabível de salientar suas boas intenções. Primeiro de tudo por não se conter e apelar para uma história óbvia, preguiçosa e que tem uma reviravolta que seria criticada até na “novela das oito” (eu sei que agora é “das nove”… mas prefiro a expressão clássica).
Diante da preocupação de inserir o espectador dentro desse mundo, cai na mesmice de acompanhar uma recruta Agojie (Thuso Mbedu) que é introduzida nesse mundo através de uma quantidade absurda de diálogos expositivos de sua mentora, Izogie (Lashana Lynch). Não contente com isso, a trama ainda cai, depois de tudo isso, em uma coincidência que beira o vexatório e, mesmo assim, é usada para empurrar o filme para sua finalização (o que é pior ainda).
A Mulher Rei tinha tudo para ser um filme focado na guerra, na irmandade entre as guerreiras e até em uma intriga palaciana, mas se decide por quase um drama familiar e ainda um desespero para recompensar o espectador que perceber que está torcendo para um Rei escravagista e meio babaca (vivido por John Boyega). O arco envolvendo o azeite de dendê e o fim da venda de escravizados para o comerciante brasileiro é completamente desnecessário e só ajuda o filme a ser maior do que devia e se sustentar em pilares muito menos interessantes. Fora isso, mais uma vez coloca um “gringo” para falar português e passa vergonha.
Mas ainda assim a direção de Gina Prince-Bythewood salva o filme desse monte de equívocos. Tanto sozinha, quanto com o trabalho do departamento de arte. A recriação desse mundo é precisa e empolgante, assim como os figurinos do elenco, detalhes que valorizam ainda mais o trabalho da diretora de deixar até as bobagens do roteiro bonitas e empolgantes. Sem contar, é claro, o quanto isso, muito provavelmente, ajuda os ótimos trabalhos do elenco.
Viola Davis só reforça sua existência como uma das maiores atrizes de sua geração, tanto pelo poder de valorizar absolutamente qualquer cena que participa, quanto pela facilidade de construir qualquer tipo de personagem que tem em mãos. E por mais que seja difícil apontar esse tipo de coisa, e possa parecer leviano, é impossível não pensar o quanto Viola Davis não está em um lugar de celebração ocupado por atrizes como Meryl Streep somente por ser negra.
Se essa afirmação parece exagerada, tente pensar o quanto John Boyega, mesmo mostrando cada vez mais qualidade e capacidade em cada papel que fez, como aqui, não parece nunca figurar entre os mais respeitados jovens atores de sua geração. O mesmo poderia ser dito ainda mais de Lashana Lynch, que mesmo tendo emplacado coisas em sua carreira como Capitã Marvel e o último 007, ainda parece presa a papeis que obrigam as escolhas de atrizes negras (tirando esses dois,obviamente). O que é um desperdício enorme, já que sua presença em cena é sempre gigante e seu carisma praticamente rouba o filme.
E talvez a maior importância de A Mulher Rei esteja nesse lugar, na intenção de fazer um épico gigante sobre uma história real de um povo guerreiro e que precisa ser celebrado por Hollywood e mostrado para o mundo. Que suas imprecisões históricas fiquem de lado em detrimento da diversão e da celebração dessa força. E se você não se apegou tanto com o “real heroísmo” de William Wallce, por exemplo, por que deixar essa indignação histórica justamente para A Mulher Rei e os Daomeanos?
“Woman King” (EUA, 2022); escrito por Dana Stevens e Maria Bello; dirigido por Gina Prince-Bythewood; com Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Shiela Atim, John Boyega, Hero Fiennes Tiffin, Jimmy Odukoya e Jordan Bolger
1 Comentário. Deixe novo
Os caras contaram uma mentira no filme, mudaram a história, alterando fatos reais, mas para os críticos, tudo bem!!!Afinal Hollywood faz isso há anos, que vergonha!!!!