Belfast não é o primeiro e nem vai ser o último filme autobiográfico de um diretor que tenta olhar para sua infância com uma carga de emoção e melancolia. Mas toda vez que isso é feito por um diretor acima da média, como Kenneth Branagh, o resultado é sempre imperdível.
Não que, por exemplo, Belfast tenha mais a oferecer do que Roma, dirigido por Alfonso Cuaron e que tinha muito mais vontade de encontrar as camadas mais delicadas possíveis por trás de suas lembranças ainda criança no México. O Belfast de Branagh não chega nem perto disso, mas é sincero, oferece algo muito simples e cumpre o que promete.
Talvez Belfast seja mais feliz do que Roma, mesmo também em meio a um período politicamente tenso e que dita as ações da família de Branagh, na verdade, na família de Buddy (Jude Hill), seu alter ego no filme.
Buddy, seu irmão mais velho (Lewis McAskie) e seus pais, “Ma” (Caitrona Balfe) e “Pa” (Jamie Dornan), são uma família de irlandeses protestantes que vivem suas vidas no final dos anos 60 até que explode a tensão religiosa (e política) no país. Assim como toda vizinhança, Buddy e seus pais passam a ser perseguidos pelos católicos, o que faz com que a rua se torne uma espécie de trincheira entre arames-farpados e barricadas.
Mas Belfast não é sobre isso, é sobre Buddy. Sobre como ele enxerga não só o que está acontecendo, mas também um mosaico de acontecimentos que vão ditando esses dias movimentados. A primeira paixão na escola, a crise no casamento dos pais, a velhice dos avós e, é claro, o cinema. Esse último, uma porta de entrada para Buddy conseguir fugir dessa realidade que ele ainda está entendendo, para encontrar a possibilidade de voar nas asas do calhambeque mágico de Dicky Van Dyke.
O calhambeque é colorido, assim como alguns dos outros “filmes dentro do filme”, já que o preto e branco da realidade não dá conta dessa fantasia. Falando em preto e branco, é obvio que é clichê declarar acertos desse estilo, já que ele valoriza realmente a plástica de certos filmes (vide Roma), mas também seria impossível não elogiar o trabalho de Branagh em parceria com Haris Zambarkoulos, que mais recentemente assinou também a fotografia de Morte no Nilo, cujo único momento realmente interessante do filme é o prólogo em preto e branco.
Já Branagh, quando não está invertendo horizonte em filme do MCU e nem pegando qualquer projeto sem personalidade, continua sendo um dos diretores mais interessantes de sua geração. O diretor já tinha brincado de preto e branco no começo de sua carreira em Voltar a Morrer (lá no longínquo ano de 1991), entretanto, mesmo tendo se tornado um cineasta de grandes filmes shakespereanos, faz de Belfast talvez seu filme mais íntimo e delicado. É lógico isso é o que todos esperam de uma cinebiografia, mas ao invés da grandiosidade de suas cenas (como Cuaron faz em Roma), Branagh opta por Buddy.
Sua câmera parece estar sempre com Buddy, tanto na altura de seus olhos, como de lado, com ele fora da composição central, mas apenas escutando. O ministro protestante gritando na igreja com a câmera baixa, se torna quase um monstro. O irmão conversando com o pai, de longe, surge como a chance de escutar algo que não era para ele estar escutando.
E Belfast é sobre isso, sobre Buddy escutando, aprendendo, entendendo e tentando criar seu caminho, mesmo que isso signifique apenas alguns poucos passos. Mas são passos que, muito provavelmente, o Buddy adulto nunca irá esquecer. Branagh, que também escreve o roteiro, não expõe nada com complexidade, apenas vai deixando o menino ir entendendo o que está acontecendo enquanto liga as peças. Separar os temas do filme em pílulas dá à história uma leveza incrível e uma veracidade ainda mais significativa, afinal, a vida real não é formada por episódios que duram algumas cenas continuas, mas sim pedaços esparsos de experiências.
Ainda no assunto “pílulas de vida”, Belfast entrega boa parte de sua emoção e sensibilidade para a relação de Buddy com seus avôs maternos, “Pop” (Ciarán Hinds) e “Granny” (Judi Dench). A dupla é perfeita e, provavelmente, o melhor do filme. Não só por serem dois monstros do cinema, também por criarem entre os dois personagens uma dinâmica incrivelmente verdadeira, bem-humorada e apaixonante.
Talvez a boa atuação dos dois seja um pouco culpa de Branagh, já que absolutamente todo elenco entrega um trabalho acima da média e que constrói personagens cheios de personalidades e que enchem a história de vida, até nas menores participações. Os pais de Buddy, por exemplo, mesmo em meio às tensões e decisões que tentam esconder dos filhos, transbordam sempre uma união e uma química que dão uma força enorme para o filme, já que suas decisões indicam o caminho de Buddy e é preciso acreditar naquilo tudo que estão optando.
Já no final do filme, Branagh dá a Caitrona Balfe e Jamie Dornan uma brilhante e sensível oportunidade de um número musical sincero e apaixonado. Mostrando o quanto é um diretor que deve ser sempre respeitado. Ao mesmo tempo, um cineasta que sabe ser sensível e delicado, como o olhar da avó vendo a família indo embora em busca de novas oportunidades e uma vida mais segura.
Em certo momento do filme uma amiga da mãe de Buddy lembra ela que os irlandeses que saem do país continuarão sendo felizes desde que tenham sempre um telefone, um copo de Guinness e a partitura de “Danny Boy”. Branagh foi além disso, se tornou um diretor celebrado por sua geração e um ator respeitado como poucos, haja telefone, Guinnness e “Danny Boy”.
“Belfast” (UK, 2021); escrito e dirigido por Kenneth Branagh; com Jude Hill, Lewis McAskie, Caitrona Balfe, Jamie Dornan, Judi Dench, Ciarán Hinds e Lara McDonnell.