Cinema Sem Y: Pelo Empoderamento de Cinderela

Com a nova versão de Cinderela comandada por Kenneth Branagh, a Disney, mais uma vez, investe em adaptações live-action de contos de fadas clássicos que o próprio estúdio eternizou através de suas animações. A onda começou em 2010, com o sucesso de bilheteria do Alice no País das Maravilhas de Tim Burton. Em 2014, Angelina Jolie rendeu à Disney mais de 750 milhões de dólares ao redor do mundo e a quarta maior bilheteria do ano ao protagonizar Malévola, uma reformulação do conto da Bela Adormecida, desta vez através do ponto de vista da vilã da animação de 1959.

Em cartaz há duas semanas nos Estados Unidos, Cinderela já arrecadou mais de 250 milhões de dólares nos países em que está em cartaz – no Brasil, o filme estreou na quinta-feira, 26 de março. Em seu primeiro fim de semana nos cinemas norte-americanos, 66% da audiência do longa era de mulheres – apenas na primeira sexta-feira, a porcentagem era de 77% – e, do público total, 66% era formado por famílias – a maioria levando as filhas pequenas para ver a princesa.

Histórias voltadas ao público feminino arrecadam dinheiro, e muito. Mulheres vão ao cinema, e muito – nos Estados Unidos, elas já são mais de metade do público. Mas a indústria cinematográfica ainda trata as mulheres como um público restrito – o marketing de Frozen, por exemplo, frequentemente centrava nas figuras do boneco de neve Olaf e da rena Sven, evitando vender a obra como um “filme de princesa” – mesmo sendo a primeira animação do estúdio a trazer duas protagonistas femininas e contendo uma poderosa mensagem para as meninas e mulheres da audiência.

Cinema sem Y Malévola

Cinderela e Malévola não escondem que são histórias sobre mulheres, e conseguem atingir um público variado – além de homens acompanhando suas namoradas, esposas e filhas, eles podem e assistem a filmes sobre mulheres, assim como mulheres assistem a filmes sobre homens. Ao contrário do filme comandado por Jolie e das demais versões live-action de contos de fadas popularizados por suas versões animadas, refilmados ou não pela Disney, Cinderela se limita a recontar a história que o estúdio já havia contado em 1950, esquecendo que, hoje, o público feminino tem acesso e deseja princesas, e protagonistas em geral, bem diferentes das que conhecíamos naquela época. Como escrrevemos em nossa crítica, a Ella de Lily James se sentiria em casa no lugar da princesa da clássica animação – o que, mais de 60 anos depois, é um péssimo sinal.

É verdade que o roteiro de Chris Weitz tenta dar alguma profundida ao príncipe Kit, vivido por Richard Madden – mas mesmo isso se limita a projetar nele as qualidades de Ella. Pelo menos, aqui, podemos compreender o encantamento que Ella sente pelo rapaz. No lançamento do filme em Londres, Madden falou sobre o assunto:

“Cinderela não precisa do Príncipe Encantado. Ela estaria bem sem ele. […] Meu trabalho foi o de criar um príncipe que fosse merecedor das afeições dela. Ela estaria bem sem ele – essa é a personagem. Ela é forte e valente e não precisa dele. Na verdade, eles acentuam o que há de melhor um no outro e é por isso que eu quis fazer isso, porque não era aquela mensagem um tanto quanto ultrapassada – e, provavelmente, não muito boa de passar às crianças – de que você precisa de um homem com uma casa grande e muito dinheiro para resgatar você de sua vida terrível. Na verdade, você precisa de alguém que traga à tona o que há de melhor em você e que lhe encoraje.”

A intenção é boa e, realmente, Ella e Kit têm compatibilidade e se dão bem – o resto, porém, não foi capturado pelo filme. Ella aceita passivamente, sem uma única reclamação, o abuso que sofre de sua madrasta e de suas meias-irmãs. É seu encontro com o príncipe que a liberta das antagonistas, já que ela nunca tomou nenhuma providência para livrar-se delas ou mudar seu comportamento maldoso. Da mesma forma, ela espera até o anúncio do baile real para, talvez, encontrar-se com Kit, e espera que ele a reencontre após o baile. Ella espera e age de acordo com as ações dos outros, jamais tomando as rédeas da própria vida – quando ela decide ir ao baile, ela rapidamente é impedida pela madrasta, até que a Fada Madrinha aparece e dá a ela permissão para ir.

A história de Ella termina com o “felizes para sempre” causado por seu casamento com o príncipe. Não há nada de errado em contar histórias de real – romance e atração são parte importante da vida de qualquer um mas, obviamente, não o único objetivo das mulheres, e já passou da hora de pararmos de agir como se isso fosse verdade. Tanto Frozen quanto Malévola incluíram interesses românticos para suas princesas, sem que esse se tornasse o elemento salvador, redentor ou principal das garotas – como é o caso de Cinderela. Para este último, “coragem” significa “aceitar tudo sem discussão na esperança de que uma hora passe”, e não fazer nada para que isso aconteça – basta sorrir, sonhar e pedir às estrelas que, uma hora, uma Fada Madrinha e um príncipe surgirão para lhe tirar da infelicidade e da miséria. É exatamente a mensagem transmitida pela animação de 1950, e a essência de outras duas das primeiras princesas da Disney, Branca de Neve e Aurora. Elas, porém, já ganharam adaptações que as modernizaram.

CInema Sem Y: Frozen

Fora do estúdio do Mickey, 2012 teve duas versões da história da Branca de Neve: Espelho, Espelho Meu, da Relativity, e Branca de Neve e o Caçador, da Universal. Com pegadas bastante distintas, o primeiro trouxe Lily Collins como uma princesa corajosa, determinada e doce em um universo multicolorido de figurinos estonteantes; o segundo, por sua vez, colocou Kristen Stewart como uma princesa transformada em guerreira lutando por seu reino ao lado do caçador contratado para matá-la.

Assim, Cinderela é não apenas um filme que já nasce antiquado como uma demonstração da falta de ambição e criatividade do estúdio que, no ano seguinte ao lançamento de Malévola e Frozen (ambos chegaram ao Brasil em 2014), já parece ter desistido de inovar suas princesas. Há quase vinte anos, Drew Barrymore protagonizou uma versão muito mais interessante da Gata Borralheira em Para Sempre Cinderela.

Em entrevista ao Radio Times, o diretor Kenneth Branagh declarou que teve a intenção de empoderar sua versão de Cinderela, criando uma jovem forte que seria um ótimo modelo para as garotas de hoje. Para ele, é importante mostrar que existem vários tipos de força:

“Ella é um exemplo tão forte e positivo quanto Katniss Everdeen de Jogos Vorazes, por exemplo – apenas diferente. Para ela, não há a necessidade de pegar um arco e flecha ou um machado – ou de competir diretamente em um mundo específico. É outro tipo de força, expressa de forma diferente. […] A bondade é um tipo de super poder.”

É verdade: força e coragem se manifestam de diversas maneiras, e vêm mais facilmente para algumas pessoas do que para outras – e as personagens femininas devem, certamente, retratar essa diversidade. Mulheres, afinal, são seres humanos complexos, complicados e diversificados. E manter a bondade em frente às adversidades e crueldades da vida e de outras pessoas é certamente algo admirável e um exemplo a ser seguido. Ella manter a esperança na humanidade e na bondade de outras pessoas – e dela mesma – enquanto lida com os abusos da nova família seria algo de se admirar, e uma personagem verdadeiramente forte; aguentar tudo sem reclamar e apenas reagir às ações dos outros, não. Boas intenções dos realizadores à parte, não foi isso que foi visto no produto final.

Apesar de conter quatro personagens femininas no centro da história – Ella, a madrasta vivida por Cate Blanchett e suas duas filhas -, Cinderela é mais um filme que traz as outras mulheres da história como antagonistas da bondosa protagonista. Aqui, a ambição e a vontade de levar uma vida confortável e de possuir coisas bonitas são personificadas nas figuras maldosas e mimadas das meias-irmãs, que – o horror! – gostariam de chamar a atenção do príncipe no baile. Ella seria o contrário disso mas, é claro, é ela quem domina os olhares de todos na festa com seu vestido estonteante – mas, nela, isso não é feio, já que foi um presente da Fada Madrinha e não algo que ela quisesse por si só. Da mesma forma, a tentativa de construir motivações para a madrasta é rasa e tão pouco desenvolvida que sequer as compreendemos realmente – ela se casou com o pai de Cinderela por amor ou pela segurança financeira, afinal? E – na época – não seria compreensível uma mulher se casar para garantir uma casa e comida para ela e para as filhas? Para piorar, o principal impulso da madrasta para abusar de Ella é ciúmes da mãe da garota, morta há décadas – aqui, não há espaço para relacionamentos profundos ou saudáveis entre mulheres. Mesmo a mãe de Ella se limita a aconselhar a garota a “ter coragem e ser gentil”, ou seja, considerando que a ideia de coragem do longa é “ficar quieta e esperar que uma solução caia do céu”: seja uma boa garota e não incomode.

Cinema sem y Cinderela

Seria maravilhoso, também, se alguém decidisse aproveitar a onda das novas versões de contos de fadas para acrescentar um pouco de diversidade ao grupo das princesas – nada obriga todas essas garotas, vivendo em reinos fictícios em mundos mágicos, a serem todas brancas. Cinderela, ao menos, povoa o baile com a realeza de diversos países, apresentando uma galeria de princesas espanholas, negras e asiáticas – elas não tem nada para fazer além de encher o palácio, claro, mas pelo menos sua existência é reconhecida, o que é mais do que os filmes anteriores fizeram.

A Disney, através de suas princesas, popularizou e ajudou a criar muitas das noções de feminilidade e ambição feminina que perpetuam a sociedade até hoje: bondade, docilidade, delicadeza (significando, mais uma vez: não incomode e não chame atenção); e criou a figura do Príncipe Encantado que salvará a garota de sua vida triste e sem perspectivas, oferecendo a ela a felicidade que ela merece por ter sido boazinha e não ter incomodado mesmo convivendo com pessoas – mulheres – maldosas e abusivas. Tanto nas animações quanto em suas adaptações live-action, esses estereótipos foram abandonados há tempos, como destacamos em nossa coluna de julho do ano passado.

Com Frozen e Malévola, a Disney finalmente também abandonou a ideia de relações tóxicas entre mulheres, trazendo, pela primeira vez, duas personagens centrais – Anna e Elsa na animação e Malévola e Aurora no live-action – com um relacionamento complexo, complicado e que era o foco principal das histórias. Foi a primeira vez, também, que o estúdio apresentou a ideia do “ato de amor verdadeiro” como sendo originado por um amor não-romântico; em Frozen, inclusive, é Anna quem precisa de ajuda e quem comete o ato, salvando, assim, a si própria.

A nova versão de Cinderela ignora toda essa (re)construção do estúdio. Seriam as histórias feministas da Disney apenas uma fase? Teriam eles esquecido a chave do sucesso de suas produções mais recentes, que renderam tantas discussões sobre feminismo, empoderamento e representação? Esperamos profundamente que não, e que este filme seja uma exceção à regra de que as princesas não são mais como antigamente, e do reconhecimento de que as meninas e mulheres de hoje têm ambições e sonhos maiores do que aguentar o sofrimento até que o belo príncipe apareça.

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