Destacamento Blood | Poderoso e Obrigatório


Spike Lee é um diretor obrigatório. Destacamento Blood, seu novo filme que foi produzido pela Netflix e chegou diretamente ao serviço de streaming, demonstra mais uma vez o quanto Lee precisa ser visto.

O cineasta americano, mais do que nunca, sabe que tem a responsabilidade de ser a voz de uma fatia da população não só dos Estados Unidos, como do mundo. Assim como em Infiltrado na Klan, não é mais possível passar despercebido, é preciso deixar bem claro, ofenda a quem ofender. Principalmente, pois os que se ofenderem, nesses casos, nunca mereceram tanto essas agressões.

Destacamento Blood não só expõe a ferida do racismo, como cutuca aquele machucado à bala que o Vietnã vai sempre ser para os Estados Unidos. Duas guerras que o país não para de perder. Não existe fim para nenhuma delas. A luta continua e Spike Lee está na vanguarda dessa fila de soldados embrenhados na selva sem saber de onde virão os tiros.

Lee está nessa linha de frente assinando o roteiro junto com seu parceiro em Infiltrado na Klan, Kevin Willmott e ainda a dupla Danny Bilson e Paul De Meo, roteiristas daquele mesmo Rocketeer de 1991, mas que, desde lá, trabalharam em um monte de jogos de vídeo game. O quarteto improvável faz algo ainda mais inesperado: um filme sobre a guerra do Vietnã que ainda não tinha sido feito.

Na verdade, estamos falando da “Guerra Americana”, como os locais se referem a ela enquanto esses quatro veteranos voltam ao país para recuperar os restos mortais do líder desse destacamento que, em meio à guerra ainda deu de cara com uma caixa de barras de ouro. Ambos ficaram enterrados, mas agora serão “trazidos de volta”.

Nem o corpo de Stormin´ Norman (Chadwick Boseman), nem as barras de ouro são desculpas para os personagens se jogarem nessa jornada (como um McGuiffin), ambos são parte importante dessa trama, ainda que o ponto principal dela seja mesmo entender que quem esteve na Guerra, não deixa de nunca estar nela.

Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norme Lewis) e Melvin (Isiag Whitlock Jr.) são os quatro soldados negros que representam essa nação inteira de negros que serviram de “sacrificáveis” em uma guerra onde ninguém entendia o que estava acontecendo. Como em um dos momentos do filme onde isso é discutido, já que os negros eram 12% da população americana, mas mais de 30% dos soldados enviados para o Vietnã. É isso que Spike Lee quer, esfregar na cara de seu espectador uma avalanche de verdades cruéis que se misturam nessa trama bem encaixada, emocionante e inteligente.

Destacamento Blood abre com imagens de personagens reais como Muhammed Ali, e Spike Lee puxa seu espectador para dentro dessa carga violenta de realidade. Aproveita momentos chaves para mostrar mais imagens de arquivo durante o filme, mas quando você menos espera e está acostumado com esses flashes, precisa ficar encarando a criança morta durante a quantidade de segundos suficientes para você entender algo que o personagem de Delroy Lindo fala para o personagem de Johnny Nguyen, que serve de guia para eles, algo como eles também serem os “negros do Vietnã”.

Lee não para de surpreender. Muda o formato de tela para chegar ao passado, mas quando o espectador dá de cara com ele, Chadwick Boseman está em companhia dos quatro Bloods em suas versões mais velhas. E não se engane, não estamos falando de falta de dinheiro, mas sim de deixar claro que nenhum dele sequer conseguiu sair daquele vale onde seu helicóptero foi abatido e suas vidas foram completamente transformadas. A tela abre novamente, existe até uma terceira mudança de razão de aspecto, mas todos os cinco Bloods continuam lá no passado, presos a esse pesadelo.

Mas sobre todas essas camadas, Spike Lee ainda quer fazer um filme do gênero com todos detalhes e clichês. Nunca uma experiência preguiçosa, entretanto sem nenhum desespero em ser novo. Destacamento Blood é único por uma série de outras questões, portanto, esse lado formuláico se permite ser simples e objetivo. Spike Lee faz um filme da Guerra do Vietnã com tudo aquilo que ele precisa ter, minas terrestres, vietcongues, perseguições no riacho e um tiroteio cheio de mortos e sacrifícios. É lógico que isso necessita de uma série de coincidências e conveniências, mas nada nem perto de atrapalhar o real objetivo do cineasta.

Spike Lee quer ser relevante, quer discutir o mundo, quer que seu ator olhe para a câmera e seja ouvido. É impossível fugir da mensagem que Lee quer passar. Ainda que seja uma profundidade não esperada em um filme desse tipo, o diretor não é sutil, não quer deixar mensagem que não seja percebida. Destacamento Blood não quer perder a oportunidade de esfregar na cara de seu espectador cada linha de diálogo, cada gesto, momento e surpresa. Quando um dos protagonistas confessa ter votado em Donald Trump, Lee não esconde o quanto isso demonstra uma falha na personalidade do personagem.

Melhor ainda, o notório boné vermelho que fez parte da campanha do atual presidente dos Estados Unidos, parece estar sempre na cabeça do antagonista. É lógico que na cabeça do protagonista ele nunca o deixa sem motivação ou razão, mas sua transformação não parece ser uma surpresa, nem bélica, nem intelectual. E quando o boné passa de cabeça, é fácil identificar essa intenção clara, divertida e importante.

O dono do Boné é Paul, e talvez seja a primeira oportunidade de Delroy Lindo ficar tanto tempo na tela depois de ter seu nome atrelado a mais de 60 produções em quase 50 anos de carreira. O resultado é uma atuação tão visceral e extraordinária que é difícil imaginar que seu nome não seja lembrado em todas premiações do cinema de 2020. Seu personagem tem uma força descomunal, uma revolta e um arrependimento que não lhe permitiram andar para frente em sua vida. Suas frustrações ainda são o ponto de ruptura de seu filho David (Jonathan Majors), que se junta ao grupo de amigos nessa viagem.

Delroy Lindo em Destacamento Blood é uma força da natureza que não se acanha em olhar para a tela, levantar seu punho e pedir a atenção de todos. Escutem Lindo, escutem Spike Lee. Escutem o que Destacamento Blood tem a falar.

Não percam a oportunidade de entender que Spike Lee fez o filme perfeito para o momento que o mundo está vivendo, um manifesto sobre a importância dos negros, não só na “Guerra dos Americanos”, como nas ruas desse país e de qualquer outro. E se Destacamento Blood é tudo isso, ele ainda é a surpreendente oportunidade de mergulhar em um “filme de Guerra do Vietnã” com Marvin Gaye lembrando a todos que “a guerra não é a solução” enquanto tenta entender “o que está acontecendo”. Isso talvez ninguém tenha a resposta.


“Das 5 Blood” (EUA, 2020); escrito por Spike Lee, Danny Bilson, Paul De Meo e Kevin Willmott; dirigido por Spike Lee; com Delroy Lindo, Jonathan Majors, Clarke Peters, Norm Lewis, Isaiah Whitlock Jr., Mélanie Thierry, Paul Walter Hauser, Jasper Paakkonen, Johnny Nguyen e Jean Reno.


Trailer do Filme – Destacamento Blood

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