O que há de tão novo em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura não é tão novo assim. Mas são tantos easter eggs, aparições surpresas, referências do MCU e (realmente) uma direção inspirada, que os fãs vão ser enganados por tudo isso. Na verdade, “enganados” pode ser uma palavra errada, o pessoal quer isso mesmo e não se importa com o que vem na rebarba, ainda que isso seja um desserviço ao personagem.
Na verdade, “desserviço aos personagens”, já que não trata muito bem, nem o próprio Doutor Estranho (Bennedict Cumberbatch), nem sua principal vítima, a Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen). Ao mesmo tempo, o roteiro de Michael Wardon convida o espectador a respeitar tantas referências externas ao filme que fica difícil entender o que ele realmente quer: respeitar ou referenciar o que já passou. Aparentemente, fazer os dois ao mesmo tempo não é possível.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura soa então como apenas mais um capítulo do MCU, um meio de colocar em prática algumas ideias que irão ser usadas mais para frente, ou que já foram muito melhor exploradas nas séries de TV do Disney+. Portanto, se você não viu Wandavision, What if…, Loki, Homem Aranha: Sem Volta Para Casa e mais umas duas dezenas de filmes (e lógico, a série Inumanos, que ninguém viu!), vai perder o rumo do filme. Também seria bom o fã ter visto os filmes do X-Men, o desenho dos anos 90 e, é lógico, estar por dentro da existência do Quarteto Fantástico e de um hype na internet que escalou um certo ator para um certo personagem. Sobra pouco para o Doutor Estranho.
E ele faz pouco também. O herói e protetor do Sanctum de Nova York acaba cruzando o caminho de América Chavez (Xochitl Gomez), uma jovem que tem o poder de cruzar as realidades do multiverso. Atrás dela, chega um monstro cheio de tentáculos que é derrotado por Estranho de um modo gore e que é a cara de um Sam Raimi que adora assinar um filme de terror bagaceira (no melhor dos sentidos).
Estranho e o Mago Supremo Wong (Benedict Wong), decidem proteger a garota enquanto tentam descobrir quem está por trás dessa ameaça. O que o leva ao encontro da Feiticeira Escarlate, ainda tentando lidar com os acontecimentos da série WandaVision. A partir disso a trama e o filme podem ser considerados spoilers, mas apenas para quem não viu nenhum dos trailers.
Isso quer dizer duas coisas. A primeira é que Estranho realmente não consegue ser relevante para o próprio filme, já que ele é pego em meio a uma enxurrada de dimensões e versões que estão lá para serem mais interessantes do que ele. A segunda é um pouco mais complexa, já que é difícil entender como a Marvel, Raimi e o roteiro de Wardon aceitam tão bem a ideia preguiçosa de colocar a Feiticeira Escarlate como uma vilã tão bidimensional.
O que leva o espectador diretamente para a série estrelada pela Vingadora e ex-esposa do Visão. O arco da personagem na série é complexo, vai do próprio vilanismo e desespero diante do luto, até a aceitação de seu papel dentro daquele e de outros universos. A própria série conversa com o clichê das personagens femininas se tornando vilãs somente por não saberem lidar com seus sentimentos. É com inteligência e sensibilidade que a série faz disso o combustível para algo diferente. Até que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura aceita jogar tudo isso no lixo.
A ideia de Warden de não esconder a vilã é ótima. Assim como a combinação de seu texto com a direção de Raimi fazem dela uma das vilãs “mais vilãs” do MCU. Não por profundidade, mas sim por uma violência fora do comum se comparada aos outros filmes do universo de super-heróis e, principalmente, por dar conta de um punhado de heróis cheios de poder. Tudo com a câmera divertidamente gore de Raimi. Mas isso ao preço de uma motivação preguiçosa e óbvia. Pior ainda, colocando tudo ao redor de um livro com cara de McGuffin e que, novamente para Raimi, faz com que, “quem o leia, acabe sendo amaldiçoado”, ou algo do tipo (quem não sabe do que eu estou falando, corra para ver a franquia “Evil Dead” e ainda ganhe um significado para uma das cenas pós crédito).
Estranho corre por aí fugindo da vilã, América Chavez está por lá só para servir de desculpa para ter um jeito de ficar perambulando entre universos. De resto, tudo é um presente para os fãs do MCU e dos quadrinhos ficarem apontando para a tela descobrindo as referências, antes de um final onde, mais uma vez, Wanda se redima e Estranho entende que seu lugar no mundo pode ser outro, o de ponte e não de protagonista.
Por mais que isso não seja um problema para a maioria dos espectadores, já que a mesmice bem-feita nunca atravancou um filme (principalmente no MCU!), o grande acerto da continuação de Doutor Estranho é a presença de Raimi. O diretor mascara bem o monte infindável de diálogos expositivos através de uma câmera precisa e um visual sempre acelerado e divertido (e closes, muitos closes!).
Expanda isso para as soluções visuais do filme, que realmente são algumas das mais inventivas do MCU, isso sem contar a vontade do diretor de voltar aos seus filmes de terror. Monstros gigante, zumbi, cabeças explodindo, olhos gigantes perfurados e arrancados, Deuses antigos com nomes impronunciáveis, a lista de esquisitices que poderiam estar em um filme de horror não tem fim. Mas tudo com uma devida “influência” (imposição) da Marvel para nada sair de uma classificação etária que permita que os menorzinhos possam ir ao cinema e, quem sabe, terem seus primeiros contatos com o gênero.
Mas sobre todos os acertos, o momento mais inteligente de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura continua sendo a conversa entre Wanda e Estranho onde ela aponta para ele o quanto “se ele quebra as regras, se torna o herói, enquanto ela, quando faz o mesmo, se torna a vilã”. Uma linha de diálogo que resumiria uma ideia complexa e corajosa de seguir, mas isso fica para depois ou em outro filme, nesse, o caminho mais fácil é deixar as coisas acontecerem por meio de motivações menos inspiradas e só uma vontade enorme de juntar a maior quantidade possível de referências e easter eggs. Só isso já fará muita gente feliz e satisfeita, mesmo significando que algumas decisões corajosas foram deixadas de lado. Afinal é só mais um filme do MCU.
“Doctor Strange in the Multiverse of Madness” (EUA, 2022); escrito por Michael Waldron; dirigido por Sam Raimi; com Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Chiwetel Ejiofor, Benedict Wong, Xochitl Gomez e Rachel McAdams.