Salvando o terror

Ninguém vai salvar o terror. Ou melhor, se tem alguém que não precisa ser salvo é o terror, mas, mesmo assim, o que não faltam são tentativas de irem a esse resgate. Mas o mais importante é saber que, caso ele seja (ou tenha sido) salvo, com certeza ele não foi salvo por aquele seu filme de terror intelectual e indie, mas sim por um daqueles cheio de sustos com acordes altos e enorme cara de pau.

Isso não quer dizer que o filme menor e muito mais criativo, que te faz sair do cinema com a lembrança fresca de o porquê você ama tanto terror, mereça ser esquecido, ignorado ou eliminado. Muito pelo contrário, é sua existência que mantém as engrenagens girando e sustentam os exorcismos de gente que não interessa, casais de investigadores picaretas e assassino sem personalidade.

Mas não adianta, cada vez que um filme sai das engrenagens e alcança as bilheterias o mesmo discurso sai das entranhas do gênero. Uma empolgação que ganha força através dos bastidores do terror e faz o sangue dos fãs ferverem de emoção. Afinal, é como se um filho querido fizesse aquele gol no campeonato “sub-oito”. Na mesma toada, esses mesmos fãs começam a ser afogados por seus próprios preconceitos cinematográficos. No segundo seguinte, o “pequeno grande terror” começou a salvar o mundo.

Fale Comigo em 2023 esteve no mesmo lugar onde já esteve Corrente do Mal, A Bruxa e Hereditário há pouco menos tempo, mas também já esteve no mesmo lugar de Jogos Mortais e até do Mistério de Candyman, aquele de 1992. Todos eles têm em comum o mesmo peso: Não salvaram nada, nem ninguém.

O Mistério de Candyman custou US$ 6 milhões para a finada Tristar Pictures (hoje Sony) e ganhou pouco mais de US$ 25 milhões nos cinemas do mundo. No mesmo ano, o medonho Sonâmbulos (aquele escrito pelo Stephen King diretamente para o cinema) ganhou US$ 30 milhões, enquanto o terceiro Alien, US$ 55 milhões, tendo custado US$ 50 milhões para a (também finada) Fox. O que isso quer dizer? Nada.

O primeiro deles obviamente foi o que teve os maiores lucros. Sonâmbulos continua sendo esquecido, mas com seu orçamento de US$ 10 milhões soa também como um sucesso. Já Aliens³, mesmo um fracasso, foi apenas um soluço na franquia, que se manteve firme e forte por todos outros filmes da série.

Não existe dúvida alguma que O Mistério de Candyman sobreviveu para muito além de seus parceiros de gênero nesse ano. Foram os três terrores mais vistos no ano, mas lembre-se, ninguém salvou ninguém.

Candyman ganhou uma continuação ao custo dos mesmos US$ 6 milhões e lucrou só US$ 13 milhões. No ano seguinte, não há nenhum filme de terror entre as cinquenta maiores bilheterias do cinema. Nem em 1994. Somente em 1996 um outro filme de terror chegou aos “top 50”, Pânico. Emplacando sua sequência no ano seguinte também entre os filmes mais vistos do mundo.

No mesmo ano (1996) também estreou nos cinemas outros dois filmes: Um Drink no Inferno e Os Espíritos. O primeiro quase um cartão de visita de Peter Jackson em Hollywood, o segundo, comandado por Robert Rodrigues e com roteiro de Quentin Tarantino. Ambos foram fracassos estratosféricos nos cinemas, o que não impediu nenhum deles de se tornarem símbolos do gênero.

Pânico não salvou o slasher, bem pelo contrário, tirou sarro dele e fez com que uma lista enorme de outros filmes embarcassem na mesma ideia.

Peter Jackson chegou ao Senhor dos Anéis e ao Oscar, mas bem antes disso assinou Fome Animal e Trash – Nausea Total, ambos praticamente sem distribuição nos cinemas do mundo e só chegando por aí através das locadoras de VHS. Talvez os dois sejam mais importantes para o gênero do que todos outros filmes citados, mas foi Pânico que mudou o horizonte do gênero. É ele que foi reconhecido, celebrado e até hoje referenciado e continuado.

As engrenagens ficam por trás do relógio. Atrás de cada Pânico e Alien³ não faltam produções desconhecidas que empurraram o gênero para frente, sem salvar ninguém, apenas cumprindo seus papéis.

O terror não precisa ser salvo, mas se for salvo por alguém, vai ser por um campeão de bilheterias. Não pelo filme desconhecido que só você conhece.

Em 1998 estreou nos cinemas do Japão, Ring: O Chamado, o original de Hideo Nakata. Mas quem levou as pessoas para o cinema ainda estava bebendo na fonte de Pânico, com Lenda Urbana, o próprio Pânico 2 e Prova Final, com o mesmo Robert Rodrigues dirigindo um monte de jovens sendo invadidos por alguns ETs malvados.

Em 2002 O Chamado, dirigido por Gore Verbinks “salvou o cinema de terror”, mesmo com ele (o terror) “indo muito bem obrigado” com um movimento inteiro de terrores asiáticos e até um cenário extremo de cinema francês engatinhando. Sadako virou Samara e se tornou mania mundial com um custo de US$ 48 milhões e rendendo US$ 129 milhões e mais algumas continuações. Além de, é claro, uma série de outros filmes “originalmente adaptados do oriente”.

Portanto, não é uma questão de ganhar menos ou mais dinheiro nas bilheterias, mas sim de fazer com que o dinheiro continue rodando nessa indústria. Afinal, o filme menor, os “Fomes Animais” do mundo, precisam chegar às mãos dos amantes do gênero e influenciar gerações de cineastas e fãs. Mas é um relógio que só anda com dinheiro.

Ninguém nunca negará o quanto filmes como Corrente do Mal, Fale Comigo e Babadook são importantes para os seus momentos. São eles que farão os fãs pensarem a respeito das possibilidades do terror, mas não são eles que farão com que os anos seguintes continuem produzindo terrores. Ninguém viu Saint Maud em 2019, mas sua grandeza não depende de seu perfil de salvamento de nada e ainda assim é um dos filmes mais imperdíveis dos últimos anos.

Nenhum desses filmes quer salvar o seu terror, mas ainda assim uma parcela do público continua levantando essa bandeira. Talvez resultado de uma carência movida pelas redes sociais e o desejo pela frase feita mais impactante. Ou até o engajamento do “hate”.

É chato e monótono ser pragmático ao observar essa “máquina do cinema” e perceber que o terror não precisa de salvador, mas se um dia precisar, vai ser salvo por coisas como Invocação do Mal e Resident Evil, por mais que isso vá chatear os fãs.

A série de filmes criada por James Wan chega aos nove filmes, juntando quase US$ 2,4 bilhões de bilheterias pelo mundo, com só o (muito) fraco A Freira sendo o “campeão” com seus US 365 milhões. Resident Evil talvez não tenha conseguido fazer sequer um filme a ser lembrado e respeitado, mas com uma média de US$ 123 milhões de bilheterias por filme (são 10), é impossível não perceber o quanto o investimento vai para onde existe retorno. Dinheiro colocado nesses filmes enormes, mas que, quase sempre respinga para “Correntes do Mal” e outras pérolas.

Antes de se repetir exaustivamente, o primeiro Atividade Paranormal custou US$ 15 mil e ganhou US$ 194 milhões. Sua continuação custou US$ 3 milhões e ganhou US$ 177 milhões. Portanto, não adiante mudar o cinema, o que vem depois não é garantia qualquer de sucesso ou fórmula impecável.

Não salvou o terror. Mas encheu os cofres da Blumhouse, que, por sua vez, pegou esse dinheiro e se tornou, talvez, uma das realizadoras mais importantes do mercado atual de cinema de terror. Mas também sem ter qualquer intenção de salvá-lo.

Afinal ele não precisa ser salvo. Talvez quem precisa ser salvo seja o fã de terror, receoso de se enxergar dentro do todo, gostando dos mesmos filmes que todo mundo e se divertindo com os sustos, gatos nos armários, fantasmas e acordes gritando nas caixas de sons dos cinemas. Um pessoal que, em vez de sentar no cinema com um pacote de pipoca e se divertir, prefere gritar aos quatro cantos seus preconceitos dentro do próprio gênero que ama tanto.

O terror não precisa ser salvo, nunca precisou, mas se um dia necessitar disso, vai ser cheio de pipoca e gritaria. Portanto, divirtam-se e não só reclamem.

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