Cinema sem Y | Retrospectiva: As mulheres no cinema em 2014


[dropcap]A[/dropcap] Cinema sem Y estreou em junho e, desde então, a coluna discutiu diversos aspectos da representação feminina no cinema e do trabalho de mulheres atrás das câmeras. Agora, em dezembro – felizmente -, já é possível perceber um avanço em algumas áreas. Duas super-heroínas vão ganhar filmes-solo e um deles já confirmou uma diretora no comando; assim como a próxima lista de indicados ao Oscar pode, pela primeira vez, incluir uma cineasta negra.

Conheça as mulheres e as obras que deixaram sua marca no cinema em 2014, contribuindo para avanços e discussões. E que a retrospectiva de 2015 retrate muitos outros.

Ava DuVernay se torna a primeira mulher negra a ser indicada ao Globo de Ouro

Ava Duvarnay

Por mais que conquistem no cinema e por melhor que seja seu trabalho, as mulheres continuam temdo uma grande dificuldade em serem reconhecidas. Até o ano passado, apenas quatro diretoras – todas brancas – haviam sido indicadas ao Globo de Ouro: Barbra Streisand, por Yentl (1983) e O Príncipe das Mares (1991); Jane Campion, por O Piano (1993); Sofia Coppola, por Encontros e Desencontros (2003); e Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2012). Streisand, por Yentl, foi a única a levar a estatueta.

Com Selma – drama que acompanha o ativista negro Martin Luther King Jr. (vivido por David Oyelowo, visto recentemente em Interestelar) na luta pelo direito ao voto dos negros, culminando nas históricas Marchas de Selma a Montgomery, no Alabama, em 1965 -, Ava DuVernay tornou-se a primeira mulher negra a ser indicada à categoria de Melhor Direção no Globo de Ouro – e a cineasta pode conquistar uma das vagas na lista de indicados ao Oscar.

Afinal, se qualquer mulher tem dificuldade em ser reconhecida no cinema, é fácil perceber que a situação é ainda mais complicada para mulheres que não são brancas. Duvernay pode não levar a estatueta no dia 11 de janeiro, ou sequer ser indicada ao Oscar – mas só de estar na corrida, já elevou as conversas sobre o filme.

Em 2013, apenas 6% dos 250 filmes que mais arrecadaram dinheiro foram dirigidos por mulheres. Diante destes dados, ter uma diretora comandando uma obra grandiosa sobre um assunto importante, com um orçamento generoso e com o apoio de um grande estúdio, a Paramount, já é uma enorme vitória. DuVernay já havia marcado presença no Festival de Sundance, em 2012, onde Middle of Nowhere lhe rendeu o prêmio de Melhor Direção em um Filme de Drama – pela primeira vez, entregue a uma diretora negra. A cineasta afirma, porém, que a estatueta não resultou em ofertas de trabalho. Com diretores homens, um longa independente bem recebido é o suficiente para que eles migrem para blockbusters hollywoodianos. Naquele mesmo ano, Colin Trevorrow, diretor de Safety Not Guaranteed – que saiu do festival sem ser premiado -, foi contratado para comandar Jurassic World.

O orçamento de 200 milhões de dólares de Selma não é incomum para produções hollywoodianas, mas certamente é raro para filmes dirigidos por mulheres – Guerra ao Terror custou 15 milhões de dólares. Foi a experiência de DuVernay com o cinema independente que conseguiu conciliar sua visão – e a do estúdio – sobre o filme com o orçamento disponível. DuVernay reconhece que as mulheres ainda tem que tomar mais cuidado com os passos que tomam em sua carreira do que seus colegas do sexo masculino. Em entrevista ao The New York Times, ela afirma ser cuidadosa ao escolher seus próximos projetos, já que um único tropeço é capaz de estagnar a carreira de uma cineasta: “Eu jogo o jogo ou tento decidir qual será meu próximo movimento? Ou posso ser como esses caras que fazem qualquer que seja a próxima coisa interessante?” Citando como exemplo a carreira de Cary Fukunaga, que migrou de produções independentes para True Detective, da HBO, ela diz: “O jeito mais garantido é continuar sendo uma ‘boa garota’, mas a artista em mim gostaria de ter uma trajetória como a de Fukunaga“.

Com o sucesso de Selma, porém, DuVernay – atualmente sem próximos trabalhos garantidos – acredita que conseguirá financiamento para o que quiser fazer em seguida. O desejo da cineasta é voltar a contar histórias sobre mulheres, como no início de sua carreira. Mas o drama ativista a permitiu ver que, além de narrativas intimistas, ela pode realizar obras grandiosas com o sexo feminino.

Outra dificuldade enfrentada por DuVernay foi a de comandar um grande elenco, repleto principalmente de homens, muitos dos quais nunca haviam sido dirigidos por uma mulher – muito menos, por uma mulher negra. Ela, que afirma que todos os funcionários de um filme, seja qual for sua função, devem ser tratados com o mesmo respeito, espera o mesmo tratamento de seus colegas de trabalho – fez questão de, no início da produção, deixar claro que é ela quem estava no comando: “Eu precisava que eles soubessem que eu respeito o que eles fazem e que eu esperava que eles respeitassem o que eu faço”, ela declarou ao IndieWire – que compilo uma ótima lista de declarações da cineasta sobre mulheres na direção.


Jennifer Kent lança o melhor filme de terror do ano

Jennifer Kent

Mesmo sem ter sido lançado no Brasil – e sem previsão de chegada -, The Badadook foi um dos filmes mais comentados na internet este ano e, definitivamente, o melhor terror de 2014 e um dos melhores dos últimos anos. Em um gênero repleto de histórias pouco inspiradas e de diretores que cedem aos clichês mais batidos, Jennifer Kent escreveu e dirigiu uma obra que William Friedkin, diretor de O Exorcista, chamou de “o filme mais aterrorizante que eu já vi”.

Desconstruindo tradições dos filmes de terror, The Babadook conta a história de uma viúva que, lidando com a perda do marido, tem que se preocupar também com a imaginação cada vez mais assustadora do filho pequeno. Construindo a tensão e o tom assustador com maestria, Kent conseguiu ainda rapidamente inserir seu “monstro”, o Babadook, na mitologia do gênero. Anthony Lane, do The New Yorker, declarou que “deveria ser feita uma lei requerendo que todos os filmes de terror sejam dirigidos por mulheres”, quem sabe assim restaurando o que o horror tem de melhor. O escritor Stephen King também é fã declarado da obra – para quem é fã do gênero, não há obra mais imperdível este ano do que o filme de estreia de Jennifer Kent, baseado em um curta-metragem que a cineasta lançou em 2005.

Kent começou no cinema como atriz, profissão que seguiu por mais de duas décadas depois de estudar em um escola de artes dramáticas na Austrália onde nasceu – Essie Davis, protagonista de The Babadook, foi sua colega. Ela foi perdendo o interesse na atuação e, em 2003, enviou uma carta a Lars von Trier perguntando se poderia trabalhar como assistente em Dogville. Von Trier aceitou, e Kent considera a experiência sua escola de cinema, afirmando que a lição mais importante que aprendeu foi a importância da teimosia.

Sobre o terror feitos atualmente, que a cineasta acompanha apesar do “constante desapontamento”, ela acredita que “muitos dos realizadores fazendo filmes de terror hoje não sabem o valor do gênero, ou percebem seu potencial. Não é só porque é um filme de terror que isso signifique que não possa haver profundidade”. Ela cita dois filmes dirigidos por outras mulheres como obras que mostram o que o horror pode ser: Honeymoon, longa de estreia da norte-americana Leigh Janiak, e A Girl Walks Home Alone at Night, da irano-americana Ana Lily Amirpour.

Ao The Washington Post, ela disse esperar que a presença de mulheres no cinema, especialmente no horror, aumente logo: “A situação vai mudar conforme o mundo muda. Mulheres adoram assistir filmes assustadores. O público é metade masculino, metade feminino. E nós conhecemos o medo. Não é como se não pudéssemos explorar o assunto”. Para o público brasileiro que não quer recorrer a meios alternativos para assistir a The Babadook – ou para quem quer redescobrir a obra na telona -, resta esperar que toda a discussão traga o filme para os cinemas brasileiros.


Michelle MacLaren no comando do filme-solo da Mulher Maravilha

Michelle Maclaren

Desde nossa coluna de agosto, destacando a necessidade de heroínas e de mulheres contando histórias baseadas em quadrinhos, o assunto avançou consideravelmente. Os filmes-solo da Mulher Maravilha e da Capitã Marvel foram confirmados, e Michelle MacLaren tornou-se a primeira mulher a dirigir um filme de super-herói. Vencedora do Emmy, a diretora de diversos episódios de Breaking Bad, The Walking Dead e Game of Thrones foi contratada pela Warner Bros. para comandar o filme-solo da Mulher Maravilha que, interpretada por Gal Gadot, vai estrear nas telonas como coadjuvante em Batman e Superman: Alvorecer da Justiça, que chega aos cinemas em 24 de março de 2016.

Personagens como Elektra e Mulher-Gato já ganharam filmes-solo mas, desde o surgimento da Marvel Studios e do boom dos filmes de super-herói, nenhuma mulher tinha protagonizado uma dessas produções. Para trazer Diana Prince às telonas, a Warner Bros. buscou especificamente uma mulher para a direção.


Terceiro filme da saga Jogos Vorazes é a melhor estreia do ano

Jogos Vorazes

Katniss Everdeen – que entrou para nossa lista de melhores protagonistas dos últimos anos – é a maior heroína do cinema atual. A protagonista da série Jogos Vorazes, adaptação da trilogia de Suzanne Collins, entrou para a história em 2013, quando o segundo filme da saga, “Em Chamas”, alcançou o topo da bilheteria – algo que não acontecia com um longa protagonizado unicamente por uma mulher desde O Exorcista, em 1973.

Este ano, A Esperança – Parte 1 também fez bonito em seu fim de semana de estreia, estabelecendo-se como o melhor do ano com os 123 milhões de dólares arrecadados pelo longa. Atualmente, no final de dezembro, o filme arrecadou mais de 289 milhões de dólares apenas nos Estados Unidos – no mundo todo, o total é de mais de 615 milhões -, atrás apenas de Guardiões da Galáxia.

Collins, que assina o roteiro do primeiro filme da série, está fortemente envolvida no processo de adaptação de seus livros para o cinema – uma história que, além de trazer uma protagonista complexa lidando com situações desesperadoras e, mesmo assim, conseguindo sobreviver, traz uma grande quantidade de mulheres em papéis coadjuvantes – personagens diversificadas e importantes para a trama, desde mães que fariam de tudo por seus filhos, passando por líderes em posições de poder a diretoras emergentes, como destacamos na edição de novembro da coluna, sobre as mulheres das adaptações young adult.

Como Cate Blanchett reforçou em seu discurso no Oscar deste ano, ao receber a estatueta por seu trabalho em Blue Jasmine, o fato de que filmes centrados em mulheres conseguem, sim, arrecadar dinheiro, é algo óbvio e inquestionável – e, como cinema é também um negócio e o lucro é importante para Hollywood, não há motivo para, em muitas semanas, nenhuma das estreias trazer uma protagonista feminina.

Jogos Vorazes provou também – mesmo que este seja outro fato inquestionável – que filmes protagonizados por garotas ou mulheres não são assistidos apenas por garotas ou mulheres. E, mesmo se um filme interessar principalmente ao público feminino, isso não quer dizer prejuízo – afinal, segundo dados de 2011 da Motion Picture Association of America, as mulheres integram, nos Estados Unidos, 51% da audiência que frequenta salas de cinema. O público feminino está longe de ser uma audiência limitada, um nicho – e já passou da hora de os executivos da indústria perceberem isso.


Laura Poitras realiza o documentário mais importante do ano

Laura Poitras

Nos últimos 20 anos, apenas cinco diretoras levaram o Oscar de Melhor Documentário em Longa-Metragem – apesar de, em festivais de cinema, 39% dos documentários exibidos sejam dirigidos por elas, segundo dados de 2012 do The Wrap. A situação é um pouco melhor do que em filmes de ficção, mas o problema da falta de reconhecimento permanece.

Assim que estreou no Festival de Nova York, Citizenfour, documentário sobre Edward Snowden, foi considerado como uma das obras garantidas a aparecerem na lista de indicados ao Oscar – com grandes chances de sair vitorioso. Dirigido por Laura Poitras, o documentário foi classificado pelo Indiewire como “uma das histórias mais importantes do nosso tempo”, destacando que Poitras pode ser considerada uma das mestres do gênero. Mesmo assim, os documentaristas mais conhecidos do público são homens, apesar do sucesso – e da importância – de obras como The Square, de Jehane Noujaim, e Blackfish, de Gabriela Cowperthwaite.

Um dos poucos documentários a cruzar a marca de um milhão de dólares arrecadados, Citizenfour foi oficializado como um dos filmes concorrendo a uma vaga no Oscar no início de dezembro, pouco depois de ser considerado o melhor documentário do ano na premiação dos críticos de cinema de Nova York e no Gotham Awards.

Poitras é uma documentarista experiente, e já foi indicada na premiação da Academia em 2006, por My Country, My Country. A cineasta encontrou-se várias vezes com Snowden para o filme, no qual ela – que se considera a narradora da história – permanece sempre atrás das câmeras. Citizenfour é o sexto documentário de Poitras, e não tem previsão de lançamento no Brasil.


Frozen reescreve os filmes de princesa da Disney

Frozen

Onze meses e centenas de reproduções de “Let It Go” depois, muita gente já cansou de Frozen: Uma Aventura Congelante. Seja este o seu caso ou não, o fato é que o mais recente “filme de princesa” da Disney foi um passo importante que o estúdio tomou em relação a suas protagonistas: pela primeira vez, havia duas protagonistas femininas – e não uma mocinha enfrentando uma vilã -, e o principal relacionamento da obra é a entre as irmãs Anna e Elsa. Pela primeira vez, também, o ato de amor verdadeiro de que a princesa necessita para ser salva não envolve um homem e, mais ainda, é um ato realizado pela própria princesa que, assim, salva a si mesma.

Frozen é o primeiro filme da Disney a ter uma mulher na direção, Jennifer Lee, que dirige a obra ao lado de Chris Buck. Lee assina também o roteiro, fazendo do filme o primeiro desde A Bela e a Fera, em 1991, em que a única roteirista creditada é uma mulher. Na crítica do CinemAqui sobre a animação, foi destacado a forma como os clichês e arquétipos comuns dos filmes de princesa são desconstruídos de forma consciente pela realizadora:

Ao trazer duas princesas em sua história, uma delas com uma característica que poderia facilmente torná-la a vilã, e colocá-las no centro da narrativa, o estúdio dá novos ares a suas (e da sociedade) próprias convenções, como aquelas em que o objetivo mais importante da vida de uma mulher é o casamento com um príncipe encantado que garantirá seu “felizes para sempre” e a salvará do perigo.

E o mais fascinante é como Frozen não apenas abandona esses clichês, mas também utiliza-os para criar expectativas no público que, ao não se concretizarem, garantem soluções inesperadas e mais eficientes, além de efetivamente mostrar o absurdo de, por exemplo, Anna querer se casar com Hans depois de conhecê-lo na festa de coroação, algo apontado pelos personagens mais de uma vez. Mas o mais interessante é mesmo a antiga tradição da Disney do “ato de amor verdadeiro” que salvará a heroína e que, aqui, mostra que o amor romântico não é o único, e nem o mais importante, tipo de amor que uma mulher precisa e busca.

O próximo projeto de Jennifer Lee é uma adaptação do livro infantil Uma Dobra no Tempo, de Madeleine L’Engle, publicado em 1962. Mais uma vez, a cineasta quer focar em histórias com diversas personagens femininas complexas, algo que o estúdio – finalmente – parece estar abraçando.


Emily Blunt é a verdadeira heroína de No Limite do Amanhã

No Limite do Amanhã

Baseado no livro de Hiroshi Sakurazaka, No Limite do Amanhã é uma das poucas superproduções do ano a não ser uma sequência ou adaptação de uma franquia estabelecida – não que isso queira dizer algo em termos de qualidade, mas é sempre bom ver a indústria estendendo um pouco seus limites. Ambientado em um futuro próximo em que a Terra luta contra uma espécie de alienígenas invasores, a história de um assessor de imprensa que é jogado no campo de batalha e, logo em seu primeiro dia em campo, morre apenas para acordar no dia anterior, é um longa divertido que traz personagens complexos e interessantes, e que consegue aproveitar bem o conceito que explora mesmo que ele não seja novidade.

Cage (vivido por Tom Cruise), o protagonista, não tem a menor experiência no campo de batalha. Aos poucos, conforme os dias vão se repetindo – ele acorda às vésperas de adentrar pela primeira vez o campo de batalha toda vez que morre -, o assessor de imprensa transformado em soldado vai ganhando experiência, desenvolvendo estratégias e se tornando eficiente em campo. Isso não seria possível se não fosse por Rita Vrataski, a veterana de guerra interpretada por Emily Blunt. É ela quem guia Cage pelas repetições, tornando-se uma constante em seus dias, e estabelecendo uma parceria com ele mesmo que, a cada morte dele, ela não permaneça com as memórias de seu pupilo.

O papel de mentora do novato é um majoritariamente reservado a homens, e a presença de Rita é algo muito bem-vindo em um filme de ação lançado no verão norte-americano. Multifacetada e complexa, a veterana não é definida por sua habilidade em campo, e nem “atrapalhada por suas emoções” (como costuma acontecer, no cinema, com mulheres em campos com maior presença de homens). Jamais duvidamos do comprometimento de Rita com sua missão, e do fato de que, a qualquer momento, ela está pronta para se sacrificar em nome da derrota dos inimigos.

Tão importante para a narrativa – que sempre respeita a personagem – quanto seu colega masculino, Rita é uma personagem marcante e que merece ser conhecida.


Obvious Child e o direito à escolha

Obvious Child

Donna, uma comediante de stand-up, engravida de um homem com quem passou uma noite. Despreparada emocional e financeiramente para ter um bebê, ela decide fazer um aborto. A comédia com pitadas de romance Obvious Child, ainda não lançada no Brasil, aborda o assunto de forma natural, tornando-o um elemento importante da jornada de Donna mas não algo que a defina – afinal, por mais que a protagonista tente e amadureça durante o filme, é bastante claro que ela realmente não está pronta para ser mãe. Ela passa a conhecer melhor o homem de quem engravidou, um sujeito doce, simpático, divertido e com quem ela se dá muito bem – mas a decisão sobre o que fazer em relação ao bebê jamais deixa de ser somente de Donna.

O filme não faz um grande discurso sobre o direito à escolha, mas não precisa – apenas ao não esconder a palavra “aborto”, a obra escrita e dirigida por Gillian Robespierre, estreando em longas-metragens, já toma um passo importante para acabar com o estigma que cai sobre as mulheres que realizam o ato. A decisão de Donna não é exatamente fácil – mas é muito mais acertada, para ela, do que ter um bebê. A protagonista jamais é julgada por ter transado com um praticamente-estranho e, enquanto obviamente foi um erro ter esquecido da camisinha, este erro não deve definir e mudar a vida dela para sempre.

A ótima performance de Jenny Slate como Donna foi apontada como uma das maiores falhas do Globo de Ouro na manhã em que as indicações foram anunciadas e Slate não apareceu nela. Obvious Child, produção realizada de forma independente com 500 mil dólares, arrecadou mais de 3 milhões de dólares nos cinemas e aparece em muitas listas de melhores do ano.


Amazing Amy: a importância de anti-heroínas e vilãs

Garota Exemplar

Outro filme que deu o que falar em 2014 foi Garota Exemplar, de David Fincher: a adaptação do livro de Gillian Flynn (que assina o roteiro do longa) rendeu inúmeros textos sobre feminismo, representação feminina, mulheres atrás das câmeras e, principalmente, sobre a importância das anti-heroínas.

Amy Dunne, interpretada com perfeição por Rosamund Pike, é uma das personagens mais interessantes dos últimos anos. Sem entrar em detalhes para não estragar a experiência de quem ainda não assistiu ao filme, basta dizer que é essencial que Garota Exemplar traga o ponto de vista dela, uma personagem que seria apenas um cadáver filmado de forma etérea para escancarar a beleza de rosto apagado e de corpo sem vida de Amy para a maioria dos cineastas. A existência de Amy desafia as etiquetas que os realizadores e o público costumam utilizar para definir suas personagens femininas, e ela se estabelece como uma anti-heroína icônica que se torna ainda mais importante por ter sido criada por uma mulher.

A reação não surpreende – a obra foi taxada por muitos como apresentando “misandria”, um suposto ódio aos homens, e mesmo como anti-feminista por trazer uma personagem tão moralmente ruim como Amy. Claro que este não é o caso: a intenção de Flynn não era a de criar um modelo, um exemplo a ser seguido por outras mulheres. Mas por que o direito de um personagem de ser um anti-herói, ou mesmo um vilão, personagens tão apreciados e icônicos quando são masculinos – Walter White, Norman Bates, Hannibal Lecter; recentemente, o Lou Bloom de O Abutre – não é estendido às mulheres?

A autora discute o assunto com frequência, reforçando sua intenção de escrever mulheres complicadas, questionáveis (os três livros dela são protagonizados por mulheres). Em entrevista ao The New York Times, ela afirma: “Meus Deus, estamos em sérios problemas se as pessoas pensam que Amy representa a mulher comum. O feminismo não é tão frágil, espero. O que Amy faz é utilizar como arma os arquétipos femininos. Ela os personifica para conseguir o que quer, e os detona. Homens fazem coisas ruins em filmes o tempo todo, e são chamados de anti-heróis. Amy pode não ser admirável, mas os homens de The Sopranos também não são.”. Em outra entrevista, ela questiona: “Não está na hora de reconhecermos o lado feio? Eu me entristeço com a falta de vilãs mulheres. Não mulheres com temperamentos curtos, donas de casa emocionalmente distantes (o que não significa maldade) ou bitches. Estou falando de mulheres violentas, más. Mulheres assustadoras. O lado negro é importante.”


Jane Campion preside o júri do Festival de Cannes

Jane Campion

Jane Campion foi apenas a segunda mulher a ser indicada ao Oscar de melhor direção, por seu longa O Piano – pelo qual recebeu também a Palma de Ouro no Festival de Cannes, pela primeira vez entregue a uma cineasta do sexo feminino. Ela não levou o Oscar, mas seu roteiro original levou a estatueta. Em 1986, ela já havia recebido a Palma de Ouro dedicada a curtas-metragens por Peel, de 1982.

Este ano, ela presidiu o júri da 67ª edição do festival. Ela continua sendo a única mulher a ter recebido o prêmio máximo do evento e, como presidente, Campion destacou a importância de abrir espaço paras as cineastas nos filmes de arte assim como nas produções maiores.

Na coletiva de imprensa da abertura do festival, ela declarou que “há um sexismo inerente na indústria. Apenas 7% dos 1.800 filmes submetidos ao festival foram dirigidos por mulheres. Este ano, em todas as programações, temos uma representação feminina de 20%. É anti-democrático, e nós mulheres percebemos isso. Toda vez, nós não recebemos nossa parcela de representação. Me desculpem, cavalheiros, mas os homens parecem comer o bolo todo”.

Ao longo de sua carreira, Campion focou em histórias centradas em mulheres, seja em filmes de longa-metragem quanto na televisão – ano passado, ela dirigiu Top of the Lake, primeira minissérie lançada no Festival de Sundance, protagonizada por Elisabeth Moss.

Com Campion como presidente, o júri de 2014 teve 5 mulheres e 4 anos. Ao lado da cineasta, a perspectiva feminina foi representada através da diretora e roteirista Sofia Coppola e das atrizes atriz Carole Bouquet, Leila Hatami e Jeon Do-yeon.


Ana Lily Amirpour e seu western vampírico iraniano

Ana Lilly Armipour

Diversos críticos apontam que, apesar das diversas referências facilmente percebidas – David Lynch, Sergio Leone, Quentin Tarantino, Jim Jarmush e noir com uma pitada da nova onda iraniana -, A Girl Walks Home Alone At Night, escrito e dirigido pela irano-americana nascida na Inglaterra Ana Lily Amirpour, se estabelece como uma obra original e imperdível. Uma produção norte-americana filmada nos desertos da Califórnia, a história é ambientada em uma pequena cidade do Irã e falado em farsi, o que levou o longa a ser considerado “o primeiro western vampírico iraniano” e, ao lado de The Babadook e Honeymoon, é mais um exemplo de um filme de terror inovador, eficiente e criativo surgido da mente de uma mulher.

A protagonista, uma vampira interpretada por Sheila Vand, é descrita como “uma anti-heroína tão impiedosa quanto romântica”. Para Amirpour, “vampiros são muitas coisas: serial killers, românticos, historiadores, viciados”, o que pode render uma diversidade de histórias.

A obra em preto e branco é o primeiro longa-metragem da cineasta. No Wired, Angela Watercutter escreve que “se o filme dela é sobre uma garota que ousa andar (de skate) pelas ruas sozinha à noite, é fácil ler isso como uma analogia a Amirpour ousando escrever e dirigir enquanto mulher”.

A Girl Walks Home Alone At Night passou por diversos festivais ao redor do mundo e entrou em cartaz no circuito limitado nos Estados Unidos. Não há previsão de lançamento no Brasil. Enquanto isso, clique aqui e confira, no The Film Stage, um documentário de 20 minutos sobre as filmagens.

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